Revista Devires v.08 n.01 – Dossiê Fotografia e Cinema

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Description

devires, belo horizonte, v. 8, n. 1, p. 01-198, jan/jun 2011 – issn: 1679-8503

Sumário

Apresentação – Anna Karina Bartolomeu e Mauricio Lissovsky – p.07

Dossiê: Fotografia & Cinema
Arret sur l’image: cuando el tren de sombras se detiene – Antonio Weinrichter – p.14
Poiética da queima, figuras em sobrevivência – Samuel de Jesus – p.30
Imagens entre a pausa e a espera – Suzana Klipp e Cybeli Moraes – p.48
Signos da ação na fotografia: linearização e temporalização do instante no fotojornalismo – Benjamin Picado – p.64
Fotograma comentado – Por uma presença ética do fotógrafo – Monise Nicodemos – p.80
Formação do estado, tecnologia visual e espectatorialidade: visões da modernidade no Brasil e na Argentina – Jens Andermann – p.90
A Boca do Lixo nas fotografias de Ozualdo Candeias – Fábio Uchôa – p.118
Investigação sobre uma imagem (Carta a Jane) – Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin – p.136

Fora-de-campo
A incestuosa gemeidade: notas sobre A Zed and Two Noughts, de Peter Greenaway – Débora Breder – p.160
Maria Antonieta: melancolia, política, tempo – André Antônio Barbosa – p.178

Normas de publicação – p.199

Apresentação

Anna Karina Bartolomeu
Mauricio Lissovsky

Fotografia e cinema sempre habitaram um território comum, configurado em certos modos de fazer, modos de experimentar e pensar um e outro. Nas duas últimas décadas, especialmente, temos visto a investigação em torno dessas relações tornar-se um tema recorrente entre teóricos de ambos os campos. Este interesse crescente parece suscitado pelo rápido processo de transição tecnológica que vai pouco a pouco abolindo as diferenças oriundas dos suportes tradicionais. Para alguns, o problema da “fotografia no cinema” ou do “cinema na fotografia” deve ser pensado no âmbito da questão dos hibridismos, da transterritorialidade e da diluição das ontologias. Para outros, a cena se abre para as arqueologias e as sobrevivências, fazendo eco, de algum modo, à proposição que Rosalind Krauss fez uma vez a si mesma: “Não pude abrir mão da idéia de que o meio é uma fonte contínua de sentido; então, em minha própria mente, converti o slogan de McLuhan em ‘o meio é a memória’”1.

Neste dossiê organizado pela Devires, trata-se de pensar as relações entre o cinematográfico e o fotográfico numa perspectiva que reconheça traços e vestígios de um e de outro, não com o objetivo de demarcar territórios e, muito menos, apontar sua indiscernibilidade, mas de investigar as condições e as implicações deste encontro. E muitos podem ser os lugares construídos para observá-lo.

Pensemos, por exemplo, no espaço-tempo marcado pela presença de uma câmera. Sejam quais forem os rituais que envolvem a cena – a produção de um retrato, uma tomada do filme de ficção, o plano do documentário –, trata-se com frequência daquele acontecimento singular e irreversível que é o encontro entre corpos mediados pelo dispositivo maquínico2. Fotografia e cinema compartilham aí da operação de extrair fragmentos de tempo e espaço, sob a forma da imagem fixa ou da imagem que se move, instaurando neste momento uma outra temporalidade, tensionada pela duração de uma espera e pelo instante do corte.

No artigo que abre este dossiê, “Arret sur l’image – Cuando el tren de sombras se detiene”, Antônio Weinrichter ressalta a dimensão espectral e melancólica que resulta dessas imagens, bem como o aspecto alegórico contido no gesto de arrancar algo de seu contexto vital. O conceito benjaminiano de alegoria e a noção de montagem ao qual está associado são retomados por Weinrichter para explorar aquilo que cinema e fotografia têm em comum e o que os distancia. Ao perguntar o que acontece quando o fluxo das imagens se detém, o autor vai se concentrar no exemplo oferecido por filmes de remontagem e de found footage nos quais a suspensão do movimento define a interrupção como um método de pensamento.

A sensação de parada no audiovisual atribuída à fotografia pode também acontecer quando há o uso da câmera lenta ou do plano sequência, como demonstram Suzana Kilpp e Cybeli Moraes no artigo “Imagens entre a pausa e a espera”. A busca por estes rastros do fotográfico no audiovisual leva à identificação de uma forma de audiovisualidade nomeada “ethicidade pausa”, cujos sentidos serão abordados através da análise do filme Sauve qui peut (la vie) (1978), de Jean-Luc Godard. Na pausa que se atualiza em cada frame ou em cada corte, o que dura é um tipo de espera – virtualidades – que as autoras aproximam daquela que caracteriza o instantâneo da fotografia moderna: “onde o refluir do tempo tem curso, onde o instante ainda não está dado e onde ele se realiza”3.

A investigação a propósito do instantâneo apresentada por Benjamin Picado, no texto “Signos da ação na fotografia: linearização e temporalização do instante no fotojornalismo”, concentra-se na forma como determinados aspectos plásticos da imagem fixa são capazes de restituir dramaticamente a duração originária de um acontecimento, alcançando assim um efeito narrativo. Numa indagação análoga à que Raymond Bellour endereça ao filme quando o instantâneo se torna pose ou pausa, suspendendo a projeção, Picado interroga-se sobre “quais são os instantes que a interrupção do movimento supõe, a que tipo de instante ela se refere”4. O autor toma a conhecida fotografia de Ian Bradshaw, The Twickenham Streaker (1974), para demonstrar que os gestos, as relações entre os corpos e sua distribuição no espaço, capturados no ponto climático da ação, funcionam como operadores da parada e como vetores de um sintagma de leitura. Afastando quaisquer determinações do dispositivo referentes à indexicalidade da fotografia, reivindica-se aí uma autonomia da imagem e dos sentidos que ela produz em relação ao fato que efetivamente ocorreu.

O reconhecimento da pulsão de morte que habita os arquivos, tal como descrito por Jacques Derrida, é o ponto de partida do texto “Poiética da queima”, de Samuel de Jesus. Neste caso, o esforço do autor não passa necessariamente por colocar cinema e fotografia frente a frente, mas em flagrar as passagens entre eles, que ocorrem quando o aniquilamento de um suporte original resulta em outras formas de sobrevivência da imagem, em obras cinematográficas, fotográficas e plásticas contemporâneas.

No segundo bloco deste dossiê encontram-se textos nos quais a abertura das imagens ao mundo histórico é o mais decisivo. Na seção Fotograma Comentado, Monise Nicodemus discorre sobre duas fotografias jornalísticas – campo e contra-campo – que registraram o assassinato da menina haitiana Fabienne Cherisma, pela polícia, em 2010. As duas imagens permitem pensar, nos termos de Serge Daney, sobre o domínio do visual e o domínio da imagem: o primeiro, que elimina o contra-campo e as condições da tomada e o segundo, que implica, na imagem, a fronteira entre dois campos de força e revela as condições do encontro que a torna possível. A partir daí, a autora discute o trabalho do documentarista em zonas de conflito e a necessidade de se repensar, na fotografia e no cinema, o que se mostra e como se mostra.

No artigo “Formação do estado, tecnologia visual e espectatorialidade: visões da modernidade no Brasil e na Argentina”, Jens Andermann confronta o fotográfico e cinemático no momento em que, segundo Jonathan Crary, o observador clássico, pontual, vai sendo substituído por um sujeito atento instável, cuja visão é reconfigurada como dinâmica, temporal e compósita5, diante de um permanente bombardeio de estímulos. A transição entre dois modos de ver, correspondentes aos regimes escópicos políticos dos séculos XIX e XX, será abordada no exame de uma série de fotografias de Juan Gutiérrez por ocasião da celebração de cinco anos da república brasileira e do conto de Jorge Luis Borges, “O Aleph” (1949). Em ambos os casos, assinalam-se os limites de um modo de ver estático e monumental. Quando a própria visualidade é concebida como ato performativo, tornam-se indistintos os domínios da mise-en-scène e da espectatorialidade.

A inscrição de circunstâncias históricas específicas em fotografias e filmes é tematizada por Fábio Uchôa em “A Boca do Lixo nas Fotografias de Ozualdo Candeias”. O pesquisador traz à luz o arquivo fotográfico do cineasta, produzido entre as décadas de 1960 e 1980, no auge da região paulistana conhecida por concentrar a produção de filmes de baixo orçamento, notadamente os eróticos. Além de indicar correspondências entre as fotografias e a obra cinematográfica de Candeias do ponto de vista formal, a análise ressalta a forma como os corpos dos habitantes e trabalhadores do cinema frequentadores da Boca aparecem fixados naquele espaço, apresentado, por sua vez, como mais um personagem.

O dossiê se encerra oferecendo ao leitor a tradução do clássico comentário do filme Carta a Jane (Letter to Jane, 1972), de Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin. Este ensaio desconstrói uma fotografia de Jane Fonda tomada em Hanói, durante a Guerra do Vietnã, para onde a atriz viajou alguns meses depois de filmar Tout va bien (1972), com os mesmos diretores. A questão sobre o papel dos intelectuais na revolução, central para Godard e Gorin (especialmente neste período, em que integravam o coletivo cinematográfico Dziga Vertov, de inspiração maoísta), é a pergunta comum aos dois filmes. No momento em que o conflito vietnamita despontava como o mais decisivo entre as lutas revolucionárias, os diretores analisam a fotografia da atriz como um “núcleo físico- fotográfico” e como uma “célula fotográfico-social”, desvelando todo um jogo desencadeado a partir da produção e da publicação desta imagem. Godard e Gorin colocam as máquinas associadas ao cinema e à fotografia na mesma engrenagem, ligada aos “problemas reais de nossa verdadeira vida material”.

Cada texto apresentado neste dossiê define sua própria trilha para chegar aos lugares de encontro entre cinema e fotografia: ora partindo da imagem que se move para pensar esta que permanece, ora do fluxo interrompido para pensar a sua continuidade ou, ainda, convocando certas categorias que marcam ambos os campos, como o tempo, a memória, a experiência histórica, a alegoria. As obras, por sua vez, continuam a produzir atravessamentos entre as formas, entre os rituais de produção e fruição associados a um ou outro modo de fazer, a um ou outro modo de experimentar as imagens. As obras continuam a nos convidar a pensar sobre este lugar. Lugar estranho, da reversibilidade problemática entre fotografia e cinema, de sua irredutível e desconfortável semelhança.