Revista Devires v.02 n.01

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Devires, Belo Horizonte, v.2, n.1, p. 01-172, jan.-dez. 2004 – issn: 1679-8503

Sumário

1. Apresentação da edição – César Guimarães – p.05
2. Da cidade palavra à cidade imagem: Rainer Werner Fassbinder e a série para TV Berlin Alexanderplatz – Elcio Loureiro Cornelsen – p.08
3. Musical em negro: o espectador e a dançarina – César Guimarães – p.32
4. Pela 2a vez (o cinema) – Godard, a literatura e o feminino – Maurício Salles Vasconcelos – p.48
5. O prelúdio de um outro momento – Oswaldo Teixeira – p.64
6. Iracema: o cinema-verdade vai ao teatro – Ismail Xavier – p.70
7. Documentário brasileiro contemporâneo e a micro-história – Karla Holanda – p.86
8. A imagem animada e a pesquisa antropológica entre os dogons – Philippe Lourdou – p.102
9. Jean Rouch: o sonho mais forte que a morte – Ruben Caixeta de Queiroz – p.110
10. Não pensar o outro, mas pensar que o outro me pensa – entrevista com Jean-Louis Comolli – p.148
11. Lista de figuras e normas de publicação – p.170

Apresentação

Desde seu início até aos nossos dias lembra mais uma vez Jean-Luc Nancy , o cinema foi e continua sendo marcado pelos signos os mais pesados e ambíguos: o mito, as massas, o poder, o dinheiro, a vulgaridade, as atrações circenses, a exibição e o voyeurismo. Entretanto, mesmo quando se põe a serviço dos mitos, o cinema esse desfile incessante e interminável de filmes acaba por submeter toda presença imóvel e toda epifania do sentido a um deslocamento que o impede diferentemente de outras artes de conservar a evidência de uma “coisa em si”. O cinema vive de um para- doxo: da presença do que passa (no espaço e no tempo) e que, portanto, faz passar toda presentação1.

O que é próprio do cinema é fazer passar as imagens e os sons, provocando a mudança do sentido fixo e cristalizado para o fluido e movente, arrastando o determinado para a deriva da indeterminação. Esse fluxo ininterrupto de filmes que o mundo nos oferece, com a diversidade de suas técnicas e recursos expressivos, faz deslizar o excesso de sentido rumo à insignificância, a começar daquela que é própria da vida: singela e evidente em contraposição ao extraordinário com que tantos filmes e inúmeras peças publicitárias buscam nos seduzir , ela faz passar essas imagens que não conduzem a nenhum mistério, a nenhuma revelação: “exemplares, sub- limes, banais, grotescas, ingênuas, falsificadas, esboçadas, sobrecarregadas. Uma vida que faz seu cinema”2.

A cada filme, o cinema recomeça. A despeito de tudo: de suas utopias (hoje tão distantes), de suas ambições e enga- nos, e até mesmo da servidão aos poderes que o cerceiam o que inclui não apenas as exigências do mercado, que só enxerga no público uma audiência rentável, mas também o predomínio de certos modelos narrativos, a inflexibilidade dos roteiros, a caracterização realista dos personagens (com insossas pitadas de psicologia), a espetacularização da ação, os maus-tratos a que a linguagem verbal é submetida, a pre- visibilidade das relações entre os campos visual e sonoro…

Para além das diversas teorias e metodologias de ontem e de hoje que elegeram o cinema como seu objeto, o que é importa é que, quando os filmes ultrapassam o domínio do visual, eles nos engajam em uma experiência que é da ordem da alteridade. Para lembrar Serge Daney, enquanto a imagem por definição ambígua solicita um desejo de ver, o visual é governado pela vontade de tudo mostrar, unívoca e obcecadamente. Há, porém, filmes que promovem a irrupção da alteridade à maneira de um rosto que surge abruptamente no quadro e desconcerta nosso olhar e nossos códigos de reconhecimento da diferença, apresentando-nos o rumor de um outro mundo que ameaça surgir, e que logo se insinua no nosso campo perceptivo, desfamiliarizando-o. Aqui, trata-se menos do aparecimento de um outro individualizado, a exibir sua diferença enquadrada pela relação sujeito que olha/objeto olhado,doqueumaestrutura.Outremcomoestrutura dirá Deleuze, a partir do romance Sexta-feira ou os limbos do Pacífico, de Michel Tournier é aquilo que povoa o mundo de “possibilidades, de fundos, de franjas, de transições” e que constitui, no mundo mesmo, um “conjunto de bolhas que contém mundos possíveis”3.

Outrem é uma estrutura que retira do eu e do olho observador o privilégio de recortar o mundo e os sujeitos que o habi- tam como um objeto, eles mesmos prontos a nos converter também em objeto assim que formos olhados. Mais do que a aparição da figura de Sexta-feira para Robinson Crusoé, outrem é, afinal, “o signo do não-percebido no que eu per- cebo”4. Ao contrário do que pode parecer, contudo, não são apenas os filmes documentários ou etnográficos comumente (e enganosamente!) identificados com a representação ou com a investigação do outro (seja o de uma outra classe ou grupo social que não o nosso, seja o de uma outra cultura) que nos propiciam tal experiência de alteridade. Seja no domínio da ficção ou no documentário (e sem excluir a interlocução entre os dois), o que é decisivo na experiência estética proporcionada pelos filmes é que eles nos ofereçam uma reserva de afecção e de imaginação que nos permita viver nossa própria experiência como experiência de al- teridade: “Alguma coisa arrebentou no mundo e todo um conjunto de coisas se desmorona, convertendo em mim”, escreve Tournier. Eis aí uma bela razão para identificar e descrever os vínculos entre o Cinema em sua diversidade estilística e em seus diferentes gêneros e as Humanidades com o pluralismo de seus saberes e a multiplicidade de seus objetos.

César Guimarães

Notas:
1. NANCY, Jean-Luc. L’évidence du film. Bruxelles: Yves Gevaert Éditeur, 2001, p. 79.
2. NANCY, Jean-Luc. Idem, p. 79.
3. DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspec- tiva, 1974, p. 319.