Descrição
devires, belo horizonte, v. 7, n. 2, p. 01-199, jul/dez 2010 – issn: 1679-8503
Sumário
Apresentação – André Brasil – p.07
Dossiê: Cinema, Estética e Política
A Estética como Política – Jacques Rancière – p.14
5 x Favela – agora por nós mesmos e Avenida Brasília Formosa: da possibilidade de uma imagem crítica – Cezar Migliorin – p.38
Pacific: o navio, a dobra do filme – André Brasil – p.56
Corpo, tecnologias, política: Mistérios e Paixões (Naked Lunch) e eXistenZ, de David Cronenberg – Maria Cristina Franco Ferraz – p.70
A teta assustada e a estrangeiridade no/do corpo – Alessandra Brandão – p.86
O tremor das imagens: notas sobre o cinema militante – Anita Leandro – p.98
Uma paisagem, um acontecimento, um poema: a poeira como uma forma de pensar o mundo – Eduardo Jorge de Oliveira – p.118
Do espectador crítico ao espectador montador – Consuelo Lins – p.132
Um dia na vida do outro espectador – César Guimarães – p.140
A presença de uma ausência: A falta que me faz e Morro do Céu – Cláudia Mesquita – p.150
Fora-de-campo
Yo, Tú, Hiroshima… (Un comentario acerca de la imposibilidad del testimonio) – Yamila Volnovich – p.164
A perseguição no cinema: um ensaio sobre Tropical Malady, de Apichatpong Weerasethakul – Marie-José Mondzain – p.180
Normas de publicação – p.198
Apresentação
André Brasil
Na tentativa de reencontrar o sentido da palavra política, não sem a ironia que lhe é característica, Bruno Latour propõe “partir da idéia de que, segundo a vigorosa expressão de Mme. Thatcher, ‘a sociedade não existe’… se ela não existe, é preciso fazê-la. E se é preciso fazê-la, é preciso estabelecer os meios para isso.”1 Eis o que deriva daí: prescindimos da política se supomos resolvida a questão da constituição da sociedade. Ela se torna imprescindível se essa constituição, assim como as mediações necessárias a tal tarefa, não estão dadas a priori, precisam ser, elas também, inventadas. Digamos então, na esteira de Latour, que a política faz existir aquilo que, sem ela, não existiria: em nossos próprios termos, o comum, como uma totalidade aberta, provisoriamente definida.
Nesse sentido, nada pode ser diretamente político, porque a política (em seu sentido instituinte, não estritamente institucional) se constitui pelo lento, pelo tortuoso e pelo opaco; ela nos exige percorrer com novos custos o movimento que vai da multidão ao comum (unidade precária, constituída de diferenças). Não seria essa uma primeira dimensão estética da política: inventar as passagens da multidão ao comum, ou seja, exercitar as formas de relação e de mediação que nos permitam fazer essa passagem, que nos permitam, em suma, criar o comum?
A tarefa se complica se pensarmos – com outro autor que nos é caro – que o comum não se reduz ao consenso (este sim, a contínua reafirmação da sociedade pressuposta): ele envolve sempre um dano que atualiza a “cena fundamental da política”, quando “a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem parcela”.2 Se a sociedade está sempre por se fazer não é exatamente porque ela não exista, mas porque sua existência – sua instituição – é uma tarefa sem fim: ao pressuposto da igualdade é preciso confrontar constantemente as diferenças dos sujeitos e dos grupos. Haverá sempre aqueles que participam do comum e aqueles que – em suas diferenças – dele estão excluídos, nele não têm visibilidade, não têm lugar (a não ser o que lhes foi destinado por outros). Ao contrário do que sugere certo discurso de matiz humanitário, incluir nesse caso não se faz pelo apaziguamento das diferenças, nem meramente “tolerando-as”. Ao reivindicar uma política de gênese estética, Jacques Rancière nos demanda reinventar a própria cena da inclusão, recriar a cena sensível, para que – transformada – ela possa abrigar, sem apaziguamento, as diferenças (diferentes sujeitos e fazeres). Eis assim uma segunda dimensão estética da política: trata-se da reconfiguração do sensível (o espaço e o tempo) que define o comum de uma comunidade. Se em um primeiro momento dizíamos que a sociedade não existe (pois é preciso sempre inventar os meios para que ela exista), em seguida, complementamos: a sociedade existe por meio de uma partilha em constante litígio, há sempre aqueles que não fazem parte do comum e que passam a fazê-lo, exigindo, com isso, sua reinvenção.
Que essa partilha produza imagens, que ela se produza em imagens, essa seria, quem sabe, uma terceira dimensão estética da política. A política, nesse sentido, diz respeito às visibilidadades, ao que se vê e não se vê, aos modos como se vê. Muito fortemente, ela diz respeito ao que da história resta como imagem, àquilo que resta (a despeito das forças que trabalham para sua desaparição). A política se inscreve na imagem como vestígio, que para Didi-Huberman é “um operador visual de desaparição”.3 Algo está em vias de desaparecer, algo é submetido à força histórica da desaparição, mas, no interior desse processo, apesar de tudo, restam vestígios. Vale dizer, eles resultam sempre, em alguma medida, de um processo de resistência. Por isso, em sua precariedade, o vestígio surge como um quase nada – é como se ele manifestasse em seu interior, em sua materialidade, esse trabalho da desaparição ao qual é submetido –, mas esse quase nada possui a espessura da história.
No domínio do espetáculo, resta dizer, a desaparição dos vestígios se dá menos por conta de um apagamento do que por uma ofuscação: uma luz que tudo ilumina e que, por isso, torna difícil perceber os processos que, à contrapelo, inscrevem na imagem a resistência dos sujeitos e dos grupos. Estes, escreve Didi- Huberman, são pequenos vaga-lumes que “dão forma e lampejo à nossa frágil imanência”, a despeito dos “ferozes projetores” do espetáculo, do biopoder e do consenso.4
Diante da tarefa da política, o cinema é, novamente, convocado: o que ele pode? Antes de tudo, ao chamado da política ele só pode responder a seu modo: ou seja, por meio dos filmes. E, logo, uma dificuldade: a política de um filme é heterogênea – incomensurável – em relação aos outros regimes de enunciação política que, fora do filme, o convocam a ser “político”. A eficácia política de um filme nunca (ou raramente) será direta e seu alcance, a maioria das vezes, não vai além do limite do próximo. Como um vagalume, diria ainda Didi-Huberman, a imagem passa, “minúscula e movente, bem próxima de nós”.5 Uma política do cinema (que afinal só pode ser a política deste ou daquele filme) não se restringe – deduzimos – à política no cinema (como se a primeira só pudesse deixar sua exterioridade em relação ao segundo tornando-se tema). Trata-se menos de tematizar a política por meio do filme, do que de buscar no cinema respostas a questões que são políticas (em sentido amplo), questões que dizem respeito à constituição do comum, àqueles que participam desse comum e que, para tal, precisam reinventá-lo; dizem respeito ainda aos dissensos envolvidos nessa reinvenção, e ao que resta – apesar de tudo – destes processos dissensuais. Os filmes não podem (muitas vezes não querem) dar estas respostas, senão, repetimos, a seu modo. Ou seja, por meio de sua própria matéria sensível e do modo específico como ela é organizada, tendo em vista um regime de enunciação específico; por meio da constituição de uma cena, engendrada – problematicamente – às outras “cenas” do mundo vivido; por meio das relações que envolvem a constituição desta cena; pelo modo como convocam os espectadores. Em sua impossibilidade de intervir diretamente no mundo, um filme pode, em contrapartida, nos colocar diante da cena da comunidade fazendo a experiência de sua partilha.6 Fazer a experiência de sua partilha significa, nesse caso, propor um comum que não existe, mas se deparar também com o que persiste, com o que resta destas “instâncias longínquas e figuras extintas da comunidade”. Como dirá, ainda, Marie-José Mondzain, o espectador de cinema é consumidor do entretenimento moderno, “mas sempre continuará, sem dúvida, a ser também participante transitório de uma cerimônia secreta na qual ele será ao mesmo tempo o predador e a presa, a fera tenebrosa e a vaca imaculada”.7
Sabemos o quanto este repertório de questões – vindas principalmente da Filosofia, da Teoria Política e da Antropologia – podem soar excessivas e distantes da Teoria do Cinema. Sabemos também o quanto sua simples importação não se faz sem problemas. De todo modo, estes problemas não nos levam a abandonar a interseção, mas, ao contrário, nos motivam a insistir em um trabalho metodológico para que ela seja possível. A interseção entre o cinema, a estética e a política tem, de fato, mobilizado pesquisadores de várias instituições que, reunidos em um Seminário Temático de mesmo nome, abrigado, desde 2008, no Encontro Internacional da Socine – Sociedade Brasileira de Estudos do Cinema e Audiovisual, se dedicam a pensá-la, em diálogo com, entre outros, os autores acima. A continuidade dos encontros – vale mencionar ainda o seminário realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG, em 2011 – nos demandou uma aproximação e um embate crescente com os filmes, intensificando a percepção de que uma política do cinema não se encontra senão a partir de uma análise formal e estilística detida. Para quem se interessa por esta interseção, boa parte do trabalho consiste, então, em achar uma medida para o que, em princípio, não tem medida comum. Afinal, trata-se de analisar a forma e a estilística do filme para arriscar a derivar daí traços de uma política do filme, a política que ele sugere, que ele cria com os recursos que são os do cinema. E então, confrontá-la, quem sabe, com um “fora” – a História, o vivido – que o tensiona e o atravessa, e para onde o filme, de um modo ou de outro, retorna.
Agradecemos enormemente aos autores que escreveram para esta edição da Devires e que se propuseram a enfrentar este desafio que é teórico e que tem se mostrado, antes de tudo, metodológico, como se verá nos textos que se seguem.
Notas:
1. LATOUR, Bruno. Se falássemos um pouco de política?. In: Política e Sociedade: Revista de Sociologia Política, Florianópolis (UFSC), v.3, n.4, 2004, p. 11-12.
2. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 26.
3. No original: “Un operateur visuel de disparition.” DIDI- HUBERMAN, Georges. Devant l’image. Paris: Les éditions de Minuit, 1990, p. 178
4. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vagalumes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011, p. 115.
5. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vagalumes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011, p. 115.
6. No original: “une communauté faisant consciemment l’expérience de son partage”. NANCY, Jean-Luc. La communauté desoeuvrée. Paris: Christian Bourgois Editeur, 2004, p. 100.
7. MONDZAIN, Marie-José. A Perseguição no Cinema: um ensaio sobre Tropical Malady de Apichatpong Weerasethakul. (Artigo publicado neste número da Devires).