Revista Devires v.11 n.2 – Dossiê O Cinema e o Animal

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Descrição

devires, belo horizonte, v. 11, n. 2, p. 02-257, jul/dez 2014 – issn: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)

Sumário

Apresentação – André Brasil e Luís Fernando Moura – p.06

Dossiê O cinema e o animal
O bestiário metafísico de Kiarostami – Rita Toledo e Maurício Lissovsky – p.16
A perspectiva animal de Brakhage – Hermano Arraes Callou – p.50
Ê gado manso! Ê saudade! Uma travessia com o filme Aboio – Cristiane da Silveira Lima – p.74
Os Itseke e o fora-de-campo no cinema Kuikuro – Bernard Belisário – p.98
Pescando Imagens: presença e visibilidade nos domínios da pesca e do cinema – Ana Carolina Estrela da Costa – p.122
Filhos-imagens: cinema e ritual entre os Tikmu’un – Rosangela Tugny – p.154
Fotograma comentado – Um fotograma de Índia: Matri Bhumi, Roberto Rossellini, 1959 – Nicole Brenez – p.180
Por uma fanerologia das imagens: Adolf Portmann e as formas animais – Eduardo Jorge de Oliveira – p.194
As aparências não-endereçadas: usos de Portmann (Dúvidas sobre o espectador) – Bertrand Prévost – p.210

Fora-de-campo
Paisagens sonhadas: imaginação geográfica e deriva melancólica em Jauja – Angela Prysthon – p.230

Normas de publicação – p.256

Apresentação

André Brasil
Luís Fernando Moura

Na base da separação entre cultura e natureza – grau zero da constituição Moderna – está nosso crescente e vigilante distanciamento em relação aos bichos. O humano, sabemos bem, define-se senão negativamente frente a sua origem, cabendo ao animal um duplo papel: de um lado, ele permanece o que deixamos de ser; será então objeto do que nos tornamos. De outro lado, o dito animal guarda uma espécie de memória da origem. Devolve-nos um olhar absolutamente outro, “olhar sem fundo”, e nos “dá a ver o limite abissal do humano”, segundo a bela formulação de Jacques Derrida. Se, por um lado, a biopolítica – ou zoopolítica, para Fabián Ludueña Romandini – constitui-se justamente pela domesticação da animalidade do homem, por outro, o animal será não apenas objeto de nossa humanidade, mas também – assumindo o lugar de sujeito que nos olha e nos interroga – aquele que, silenciosamente, lança uma suspeita: a do limite e do fracasso de nosso projeto.

Os animais sempre foram alvo de nossa mirada, a de quem observa os peixes através do vidro de um aquário: para John Berger, “O que sabemos sobre os animais é um índice de nosso poder, e assim é um índice que nos separa deles”. Se por um lado o cinema herda algo dessa mirada – como a que endereçamos aos aquários, aos zoológicos e aos espetáculos circenses –, de outro ele permite inscrever traços desse incontrolável e imponderável corpo que ataca, debate-se, esquiva-se, ou que simplesmente nos devolve o olhar. O que há nesse olhar? Ele é de fato “devolvido”? Que sujeito é esse que olha? Estas são questões cujas respostas desconhecemos.

No encontro entre o cinema e os bichos – tema do presente dossiê – há um inquietante e produtivo desconcerto, que se explicitaria pela questão: como filmar esse outro radical cuja aparência não se endereça à câmera; cuja aparência, no limite, não se destina a um espectador? Como apanhar em um filme estes corpos, estes olhares, estas peles e estes ornamentos, que, nas palavras de Bertrand Prévost, em sua leitura do zoólogo Adolf Portmann, constituem aparições antes daquele que vê? Ao mesmo tempo em que organiza e submete as aparências animais – aparências não-endereçadas – a uma visada moderna, o cinema é capaz, quem sabe, de conferir a elas uma nova visibilidade. Trata-se paradoxalmente de fazer aparecer cinematograficamente, portanto no interior do espetáculo, aqueles cujos modos de aparição são alheios ao espetáculo: jogo de mútuas afetações no qual se alteram tanto os bichos, em seu aparecer, quanto o próprio cinema, em sua visada.

Para este dossiê,1 definimos um recorte modesto, que guarda contudo certa singularidade. Trata-se, antes de tudo, de acirrar questões próprias ao cinema – especialmente o cinema documentário e o cinema experimental – de modo a se ampliar, para além do humano, os limites de sua política: como filmar, como tornar recíprocas as relações entre sujeitos que filmam e sujeitos filmados; como abrir o filme à perspectiva do outro? Estas são perguntas que ganham outro escopo (e, quem sabe, mudam de natureza) na medida em que se expande o cosmos com o qual se compõe a cena cinematográfica; na medida em que – variando do humano ao animal – o cosmos deixa de ser unívoco para abrigar mundos díspares e incomensuráveis entre si; agências inauditas, traduções permanentemente por se fazer.

Na maior parte dos filmes aqui abordados, abala-se a perspectiva humana emprestada à máquina do cinema, de modo que ela incorpore posições e perspectivas animais. Em Five (2004), de Abbas Kiarostami, Mauricio Lissovsky e Rita Toledo descobrem um bestiário metafísico, no qual cães, patos, sapos e pombos abrigam-se no limiar – o estirâncio – aqui “onde o objeto readquire sua disponibilidade original” (Alan Corbin). Vemos então, no filme de Kiarostami, as súbitas ou sutis passagens, assim como as distâncias intransponíveis entre humanidade e animalidade. Ao mesmo tempo em que nos voltam as costas, alheios aos desígnios do humano, mergulhados em sua condição animal como “água na água”, os bichos adentram o quadro cinematográfico, integram uma mise-en-scène: à ontologia metafísica (da ordem do ser) o filme acrescentaria, portanto, uma topologia cinematográfica (da ordem do estar), que caberá aos autores descrever.

Hermano Callou retornará ao cinema de Stan Brakhage para também apreendê-lo sob a forma de um breve bestiário. Nesse caso, contudo, não se trata simplesmente de filmar os animais, mas de atribuir às imagens pontos de vista não humanos. Para tanto, em Brakhage, é a própria concepção de visão que deverá ser colocada em questão. Reivindica-se uma visão imaginativa e criadora (vizinha às imagens hipnagógicas, ao sonho e ao delírio), que, ao se distanciar do individualismo romântico, ganha uma definição fortemente imanente, somática, em que “as distinções outrora incomensuráveis entre ‘o mundo fenomenal’, ‘o aparato óptico’ e ‘o trabalho do cérebro’ são integradas em um único continuum”. Em filmes como Moonlight (1963) – que pretende imaginar o mundo habitado por uma mariposa – e The Cat of Worm’s Green Realm (1997) – em que num jardim se figura a perspectiva dos seres minúsculos que o povoam – a visão torna- se múltipla, constituída de afetos e perceptos pré-individuais. Imaginar nos filmes a perspectiva animal participa assim do amplo projeto do cineasta que consiste em “salvar todas as dimensões da experiência visual” e de “aventurar-se na variação perpétua da visão”, evitando sacrificar as singularidades – os modos como a visão se manifesta em cada corpo vivo – a uma escala de representação estritamente humana.

A dimensão sonora – precisamente, a escuta – será agora o lócus de investigação da passagem do filme ao cosmos. Cristiane Lima dedica-se a Aboio (2005), de Marília Rocha, para mostrar como a tessitura sonora do filme – constituída de sons diretos e sintetizados, falas e cantos – nos permite acessar um cosmos no qual, pela escuta, o humano, o animal e a paisagem fazem vizinhança. O filme volta-se à experiência dos vaqueiros, em específico à sua relação com os animais por meio do aboio, em uma incursão mais sensorial do que descritivo-naturalista. Algo que, para a autora, resume-se pela figura do “roçar”: um som a deslizar ou friccionar o outro; um corpo a tocar outro corpo ou uma paisagem. Uma visão, portanto, alterada pelo tato, pelo olfato e pela escuta.

Em seu artigo, Bernard Belisário atenta para os modos de convocação do fora-de-campo em três filmes da cinematografia Kuikuro, todos eles interessados em abordar a presença dos itseke, seres monstruosos, bichos-espírito que costumam estabelecer relações perigosas com o grupo indígena. Se ali se tratava de roçar corpos, sons e imagens, aqui, mais especificamente no filme Hipermulheres (2011), trata-se afinal de um sistema de ressonâncias entre o visível e o invisível: “a modulação dos corpos (e da câmera) em cena é o traço visível e audível do campo de intensidades e afecções em jogo no ritual. O que era invisível e inescrutável aos seres humanos ordinários é dado a ver e ouvir nessas performances”. Ainda que não estejamos literalmente a ver as almas, os mortos e os bichos-espírito, as imagens formam uma espécie de dobragem que permite, nas palavras do autor, que o ponto de vista (e de escuta) dos homens e dos itseke ganhem convergência no centro cerimonial da aldeia.

É também um sistema de ressonâncias que acabamos por perceber nas relações entre homens, bichos e espíritos, mediadas pelas atividades de caça e pesca e, então, pelos filmes. Em seu artigo Pescando imagens, Ana Carolina Estrela elabora um breve mapeamento dos filmes de pesca para dedicar-se finalmente a Caçando capivara (2009), feito por realizadores tikmu’un (maxakali) da aldeia Vila Nova. Na hipótese da autora, este é um filme xamânico-caçador, que, ao acompanhar a busca pela capivara em meio à paisagem desertificada pelo capim, articula a atividade da caça e a relação com os espíritos(yãm y)-caçadores à sua própria realização. O que o filme nos oferece são intensidades visíveis – os corpos dos caçadores, com suas lanças de vergalhão, e dos cães emaranhados ao matagal – e invisíveis – a própria capivara, rara; os espíritos. Essa relação intensiva com os acontecimentos e com os seres, característica do cinema maxakali, é percebida na imagem, mas também nos cantos, que permitem acessar – sob o modo da experiência sensível – perspectivas animais.

Na continuidade desta discussão, Rosangela de Tugny, que há muito tem militado e trabalhado com os Tikmu’un em atividades de tradução, oferece-nos uma sofisticada visada acerca da relação cosmopolítica dos Maxakali com os povos-espírito, marcada por processos de adoção interespecífica: homens e mulheres se esmeram em cuidar de seus yãm yxop, que visitam a aldeia com seus cantos e conhecimentos. Mais uma vez, a relação entre corpos visíveis e invisíveis passa por uma dimensão fortemente sonora, musical: “Os yãm yxop precisam dos Tikmu’un para cantarem seus cantos, os homens precisam dos yãm yxop por perto para cantarem com eles: não sobre eles, e nem se comunicando com eles, mas em reverberação, ou em interafetação”. Em reverberação com outros povos animais e espíritos, formam um corpo cosmopolítico que não é uno, mas múltiplo; corpo feito de muitos.

Ainda que lidem com tão diverso repertório, o que esses filmes e textos nos mostram afinal são modos de conhecer e nos relacionar com os seres da “natureza”: ciências naturais, portanto, em tudo diferentes das nossas, acostumadas a objetivar (objetificar) e portanto dessubjetivar aqueles que estuda. A crítica de Adolf Portmann, retomada nos dois textos finais – de Eduardo Jorge e de Bertrand Prévost – poderia então encontrar eco aqui. Reivindica-se, afinal, uma concepção de imagem que, para além das categorias da história da arte e da ciência, será tomada como aparência autônoma anterior à própria percepção: expressão não submetida à representação, anterior ao espetáculo. Trabalho, portanto, de criação de aparências – peles – que, antes de tudo, constituem a presença e a duração de um corpo no mundo.

No reencontro de Bergson, relido por Deleuze (este que, por sua vez, se mostrava leitor atento da Antropologia), lança- se a noção de um plano de luz em si, princípio transcendental – mas não transcendente – que é menos condição para o aparecer dos fenômenos do que sua consistência mesma: “luz de aparência e não luz na qual as aparências acontecem”. Não-endereçadas, as aparências – os ornamentos – animais sugerem assim uma cosmética: imagens que, em sua duração, se expandem e se ligam a outras imagens para constituir o cosmos.

Mencionemos ainda o Fotograma Comentado que nos foi presenteado por Nicole Brenez: a presença dos animais em cena – os elefantes amorosos, o macaco desnaturalizado, a tigresa fraternal –, aliada ao gesto documentário bastante peculiar de Roberto Rossellini, faz com que o trabalho de classificação definidor de certa epistemologia venha arruinar-se por aquilo que a autora denomina formas do desordenamento. O que poderia parecer uma mera enumeração de eventos, situações e seres, em Índia: Matri Bhumi (1957-1959), de Rossellini, vai-se submetendo a pequenas perturbações, sutis intrusões. Faz-se, assim, com que o documentário escape às lógicas taxonômicas, recorrendo-se para tal a uma “montagem estratigráfica”, lateral, ou ainda, “montagem interior”, que almeja compreender as coisas por dentro. Fazê-lo, neste caso, exige não apaziguar a coabitação de coisas e corpos em uma apreensão unívoca, mas antes manter, na montagem, sua contradição (as aporias).

Digamos, por fim, que até mesmo o texto destinado à seção Fora-de-campo (aquela que traz artigos à parte do dossiê) sugere interseções pontuais com a temática em questão: Ângela Prysthon dedica-se a Jauja (2014), filme recente de Lisandro Alonso, para caracterizar sua relação com certa fabulação cartográfica e topológica proveniente da pintura, da literatura e dos westerns – será aqui, como sugere, o cachorro quem conduzirá o protagonista pela paisagem heterotópica, polifônica, da Patagônia. A autora mostra como em Jauja se estabelecem continuidades, mas também produtivas diferenças com os filmes anteriores do realizador, elucidando um caráter fabular que, no filme, instaura fortes imbricações entre paisagem, imaginação e uma vocação artificial do cinema.

PS. Adeus à linguagem, diria Jean-Luc Godard, cujo cão de estimação, farejando aquilo que as palavras e as imagens talvez ainda não alcançassem, adentra o 3D com seu focinho inquieto.

Notas:

1. O dossiê situa-se no âmbito dos “animal studies”, domínio emergente de pesquisa que, diante da existência dos bichos, associa a filosofia, as ciências humanas, as ciências naturais, a antropologia e as teorias da arte para enfrentar problemas éticos, políticos e estéticos e reconfigurar a produtividade epistemológica e sensível do pensamento e da ação humana. À parte as formulações amplamente referenciadas, cujos alicerces contemporâneos eminentes estão em Jacques Derrida, John Berger, Giorgio Agamben e Donna Haraway, entre outros, encontram-se publicações transdisciplinares de referência, sejam livros (INGOLD, Tim (Org.). What is an animal? 1988) ou periódicos como a revista chilena Paralaje (n. 9, 2013) e a britânica Angelaki (v. 18, n, 1, 2013). No campo do cinema, a questão tem notável incursão historiográfica no livro Animals in film, de Jonathan Burt (2002), mas também dedicadas contribuições de Raymond Bellour (Le corps du cinema – Hypnoses, émotions, animalités, 2009) e Akira Lippit (Electric animal – Toward a rhetoric of wildlife., 2000), bem como de recentes dossiês publicados em revistas como a escocesa Screen (v. 56, n. 1, 2015) e a chilena La Fuga (2015). No Brasil, temos a fundamental publicação organizada por Maria Esther Maciel, dedicada à chamada zoopoética (Pensar/escrever o animal – Ensaios de zoopoética e biopolítica, 2011). Nos últimos anos, fomos também provocados por mostras dedicadas ao encontro entre bichos e filmes, como a acurada O Animal e a Câmera, realizada pelo forumdoc.bh (2011), em Belo Horizonte.