Descrição
devires, belo horizonte, v. 14, n. 2, p. 01-307, jul/dez 2017 – issn: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)
Sumário
Apresentação – Roberta Veiga, Carla Italiano e Ilana Feldman – p.11
CINEMA E ESCRITAS DE SI
Identidade em deslize: o registro autrobiográfico na obra de Chantal Akerman – Alisa Lebow – p.18
Autobiografia, exílio e alteridade: o cinema de David Perlov, Avi Mograb e Elia Suleiman – Ilana Feldman – p.30
Perdido entre lampejos de beleza: paisagem, território e política em
Lost Lost Lost (1976) e As I was moving ahead I saw brief glimpses of beauty (2000) – Laís Ferreira Oliveira – p.58
A invenção de uma tradição: autobiografia no cinema experimental norte-americano – Patrícia Mourão de Andrade – p.82
Filmo, logo vivo _ modulações do filme-diário em Jonas Mekas e David Perlov – Carla Italiano – p.104
O sujeito ético no cinema de Nanni Moretti – Gabriela Kvacek Betella – p.124
A escrita de si nas praias de Agnès Varda – Lúcia Castello Branco e Maria Fernanda Machado – p.146
Sentir a imagem: performatividade e mise-en-scène no cinema de Naomi Kawase – Henrique Codato e Eduardo dos Santos – p.162
Helena Solberg: entre o pessoal e o político – Karla Holanda – p.184
Já visto jamais visto: devir memória ou a potência histórica na escrita de si – Roberta Veiga – p.204
Documental y Experiencia Introspectiva: relaciones, correspondencias y tensiones para explorar el espacio de las prácticas cinematográficas autorrepresentacionales – Paola Lagos Labbé – p.226
FOTOGRAMA COMENTADO
Catar imagem se limita com escrever (seus grãos mais vivos, à moda de João Cabral) Carlos Adriano – p.252
Fora-de-Campo
Memórias de uma catástrofe em andamento: testemunhos em vídeo de violência policial na periferia – Felipe Polydoro – p.264
A vida-lazer como vontade de futuro – Vinicios Kabral Ribeiro – p.284
Apresentação
Roberta Veiga
Carla Italiano
Ilana Feldman
Como o cinema pode ser autobiográfico se a exterioridade e a alteridade lhe são imprescindíveis? Se a câmera precisa capturar algo fora do sujeito, uma imagem do mundo, para que haja filme? A literatura há muito já instituiu, e desconstruiu, o que seria o topos do gênero com o “pacto autobiográfico” formulado por Philippe Lejeune, que se concretizaria na coincidência entre autor, narrador e personagem. Como tal coincidência é inatingível – uma vez que o personagem será sempre uma versão ficcional, textual e parcial, forjado por marcas e traços, portanto, um outro do autor que por sua vez não existiria enquanto um “em si” passível de ser decalcado no discurso –, tal topos da autobiografia literária aponta para um horizonte de expectativas do gênero, nos permitindo transportar essa formulação ideal ao universo cinematográfico, de modo a pensarmos e problematizarmos como ela se manifesta. No cinema, o autor, cineasta que escreve com as imagens, seria também o narrador de sua própria história, bem como o personagem filmado: quem filma e sobre quem se filma. Para isso, o gesto autobiográfico, confessional por princípio, exigiria, no limite, que o diretor virasse a câmera para si e produzisse algo como uma espécie de monólogo interior. Aparentemente, tal feito traria a concretização daquilo que na literatura o leitor sempre pode crer, mas nunca comprovar: a homonímia autor, narrador e personagem, graças ao registro cinematográfico que geraria a ilusão indicial de atingir o ideal do pacto, em que aquele que filma, narra e é filmado seria um só. Grande potência e, ao mesmo tempo, grande engodo do cinema, cuja ilusão de “realismo”, ao ser revelada, revelaria também a impossibilidade autobiográfica nos termos de Lejeune. Se, para a literatura, o espaço entre a crença e a dúvida do leitor na atestação do eu se expande na ficção que o texto sempre será, no cinema documentário, a autobiografia, essa inscrição do autor- cineasta na imagem – apesar da indicialidade fotográfica tão aclamada por André Bazin – também só pode se dar como recriação, uma vez que a imagem do eu é sempre artifício, construção na linguagem e por meio da linguagem, que de um si só poderia reter o traço. Ainda assim, o documentário dito subjetivo, narrado na primeira pessoa, em sua força de testemunho, por mais variadas e multiformes que sejam as estratégias de inscrição imagética de si próprio, de sua vida e suas memórias, dos seus ou de si mesmo entre os seus, levaria ainda mais longe a crença na, e o desejo pela, verdade íntima do outro.
É dessa força do testemunho de si que surge certo temor de que o cinema autobiográfico possa vir a estimular um lugar narcísico, de autoexposição, por parte de quem filma, e um desejo voyeur pela intimidade alheia, por mundos privados, por parte de quem vê. Por isso, caberia perguntar: uma vez visivelmente concretizado o pacto do gênero confessional, o cinema se manteria cinema quando aquele que deveria abrir a câmera para o mundo a retorna para si mesmo, num gesto autorreferente? Perderia ele a sua potência, tornando-se uma narrativa de imagens narcísicas e atos solipsistas? Malograria seu lastro com mundo, dimensão que lhe é constituinte, como nos alertou Deleuze sobre o cinema moderno desenvolvido no pós-guerra? Esvaziaria sua dimensão coletiva, seu vínculo com a consciência de classe, como acalentou Benjamin? Estaria fadado a não mais alcançar a alteridade da “inscrição verdadeira”, como acreditou Jean-Louis Comolli, em sua aposta no documentário?
A questão que motiva a produção deste dossiê, Cinema e escritas de si, reside exatamente aí: como o cinema autobiográfico, inscrito no regime documental e entendido em seus diversos dispositivos de elaboração e encenação do eu, resiste enquanto experiência de partilha, em sua relação com a alteridade, em sua vocação política? Desde a idealização do dossiê, nos mobilizava a certeza de que é justamente em suas variadas estratégias de autoinscrição e performance de si que o cinema não só extrapola o gesto de virar a câmera para aquele que filma (procedimento, aliás, supercodificado em lives e selfies que abundam em redes sociais), como tensiona e ressignifica esses gestos hoje automáticos e viralmente disseminados, os quais, na conjuntura digital, tendem a celebrar a vida pessoal de forma a privatizar as imagens e espetacularizar o eu. Assim, o cinema autobiográfico poderia, no avesso da evasão da privacidade, da hipertrofia da intimidade e da atrofia do político, vir a problematizar e fazer pensar em que medida o pessoal é político, a experiência de si coletiva, a inscrição do eu histórica. Como tem nos ensinado a linguística, a psicanálise e as filosofias do sujeito, não há sujeito senão já aí no mundo, assim como não há um eu fora de uma relação com um outro, já que todo relato de si constrói-se na e pela linguagem. É precisamente nessa busca por um eu, que nunca se concretiza ou se estabiliza imageticamente, que o sujeito pode vir a se elaborar, uma vez que colocar-se em obra é um processo sem fim construído na relação com os dispositivos e com a linguagem do cinema _ constituintes da subjetividade por uma relação de exterioridade e alteridade.
Visando compreender como, no âmbito do cinema, a experiência de si jamais prescindirá do aparato e da matéria do mundo, que, juntos, congregam a imagem e suas relações, apostamos que o eu cinematográfico será de saída um eu partilhado, dividido, parcial, posto em cena de forma perspectivada e relacional. Diante disso, gostaríamos de tratar neste dossiê de uma amplitude de modos de engajamento dos e das cineastas: dos mais diretamente “confessionais”, com seus filmes caseiros, domésticos e seus diários filmados, aos mais indiretamente autobiográficos, com suas memórias de tempos históricos, reflexões metodológicas e inquietações políticas. Porém, na impossibilidade de abarcar todos os gestos e autorias, contemplamos uma modesta amostra dos procedimentos e das formas de autoinscrição no cinema, com suas estratégias de abordagem e variações estilísticas permeadas por contextos socioculturais específicos, os quais instituem os diferentes dispositivos de escritas de si.
Dos diaristas do cinema, o dossiê traz dois nomes fundadores: o lituano Jonas Mekas e o brasileiro radicado em Israel David Perlov. Além da obra Diário 1973-1983, de Perlov, Ilana Feldman abre o gesto de escrita de si aos filmes Vingue tudo, mas deixe um dos meus olhos, do israelense Avi Mograbi, e O que resta do tempo, do palestino Elia Suleiman, nos convidando a perceber as diferentes figuras que os cineastas mobilizam a partir da experiência do exílio. Também tendo o exílio como tropos comum, Carla Italiano, em seu artigo, investiga as modulações de sujeito no filme-diário a partir da relação entre as obras de Perlov e Mekas, enquanto Laís Ferreira Oliveira foca no trabalho do lituano, de modo a destacar a dimensão criativa da paisagem e do território em Lost Lost Lost e As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty. Passando por Mekas, porém abarcando outros notórios cineastas independentes dos Estados Unidos, como Stan Brakhage, Hollis Frampton e Ed Pincus, Patrícia Mourão de Andrade propõe uma abordagem histórica para pensar como as questões próprias da autobiografia reconfiguraram o cinema experimental norte-americano a partir dos anos 1960. A noção de cinema diário, assim como de autoficção, são igualmente tensionadas por Gabriela Kvacek Betella, que aborda a filmografia do italiano Nanni Moretti, principalmente através de seu clássico Caro diario, por meio do humor, do atravessamento ficcional e da contestação do cinema italiano por dentro.
A escrita feminina de si figura neste dossiê nas obras de Agnès Varda, Chantal Akerman, Naomi Kawase e Helena Solberg, com artigos dedicados exclusivamente a cada uma delas. Os gestos e performances de Varda, cineasta precursora do filme-ensaio no feminino, aparecem, pela chave da psicanálise, no artigo de Lucia Castello Branco e Maria Fernanda Machado, e, em sua dimensão plástica, no belo fotograma-comentado de Carlos Adriano. As práticas performativas da japonesa Kawase são acompanhadas pelo saudoso Henrique Codato, junto a Eduardo dos Santos Oliveira, com o propósito de ressaltar o modo como a cineasta inscreve seu próprio corpo na materialidade de seus filmes Em Seus Braços e Céu, Vento, Fogo, Água, Terra.
E tal qual um ato de profissão de fé no cinema autobiográfico, apresentamos o artigo de Alisa Lebow – originalmente publicado na edição da Camera Obscura em homenagem póstuma à Chantal Akerman e traduzido especialmente para este número –, no qual fica evidente a constante dobra entre viver e filmar que sustenta a obra da cineasta belga. Desenhando por meio de seu último filme, No home movie, um percurso pelo que há de mais confessional na trajetória de Akerman, em um movimento metarreflexivo, Lebow confidencia o “deslize” de seu gesto que, ao adentrar a obra, não irá somente convocar a vida, mas “psicanalisar” a cineasta. Contudo, ao elaborar essa confissão, a autora reconhece se tratar de um efeito da filmografia de Akerman – o chamado para a intimidade – que reforça, sobre uma teoria do cinema de escrita de si, a relação inextricável entre vida e obra.
Apesar de um notável crescimento no Brasil, a partir dos anos 2000, de realizadoras dedicadas às escritas de si, ainda que de forma indireta, ou seja, dizendo de si ao dizer de um outro (ente próximo ou acontecimento histórico), como Flávia Castro, Maria Clara Escobar, Petra Costa, Letícia Simões, Safira Moreira, Dandara de Morais, entre várias outras, Karla Holanda identifica traços autobiográficos na pioneira do cinema feminista nacional, Helena Solberg, não só em sua obra de 1994, Carmen Miranda: bananas is my business, mas também no seu curta-metragem que inaugura o cinema moderno de autoria feminina no país, A Entrevista, de 1966.
A dimensão mais fortemente memorialística do gesto autobiográfico ou, mais precisamente, o devir memória do cinema, como sugere o artigo de Roberta Veiga, está presente em Já visto jamais visto, de Andrea Tonacci, em que não apenas recolhe e monta sua própria obra como reelabora certa história do cinema brasileiro, grande parte dela construída de forma engajada e atuante pelo cineasta. Já o único artigo que não se atém a cineastas específicos vinculados às escritas de si, o de Paola Lagos Labbé, publicado aqui em sua língua original, busca percorrer os eixos conceituais centrais acerca das formas autobiográficas e autorrepresentacionais do documentário, bem como as disputas que as convocam em um contexto dominado por plataformas digitais.
Por fim, na seção intitulada Fora de campo, Vinicios Kabral Ribeiro investiga a ideia de “vida-lazer” em filmes brasileiros contemporâneos, em especial O céu de Suely (2006), Praia do Futuro (2014) e Tatuagem (2013), de modo a pensar as possibilidades de pertencimento, felicidade e futuro em vidas marcadas pela precariedade e por sexualidades fora da norma heterossexual. Nesta mesma seção, Felipe Polydoro trata dos testemunhos em vídeo, difundidos nas redes, da violência policial nas periferias brasileiras. Apesar de, evidentemente, não estarmos aqui diante de uma “escrita de si” propriamente dita, esses relatos, muitas vezes produzidos pelas próprias vítimas da violência de Estado, dão testemunho de vidas a um só tempo marcadas pela experiência traumática e mediadas pela imagem.