Revista Devires v.06 n.02 – Dossiê Jean Rouch II

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Descrição

devires, belo horizonte, v. 6, n. 2, p. 1-148, jul/dez 2009 – issn: 1679-8503

Sumário
Apresentação – Mateus Araújo – p.7

Dossiê: Jean Rouch
Estilhaços de vozes (Robinson não diz seu verdadeiro nome) – Maxime Scheinfeigel – p.12
Encontros “encorporados” e conhecimento pelo corpo: filme e etnografia em Jean Rouch – Marco Antonio Gonçalves – p.28
Algumas considerações sobre a música nos filmes de Jean Rouch – Leonardo Vidigal – p.46
Estilhaços do plano-seqüência – Daniela Dumaresq – p.62
Jean Rouch e a ética do encontro – Marcius Freire – p.80
Tourou e Bitti: os tambores de outrora – Jean Rouch – p.98

Fotograma comentado
Eros no cinema dos pobres – César Guimarães – p.104

Fora-de-campo
Entre o “indizível horror da procriação” e a “sexualidade andróide”: notas sobre The Brood e Crash, de David Cronenberg – Débora Breder – p.112
Representação da ação e a transposição do universo gráfico dos quadrinhos para o cinema: Sin City e 300, de Frank Miller – José Benjamim Picado e Julio Landim Mano – p.130

148 Normas de publicação

 

Apresentação

Mateus Araújo Silva

Na estrita continuidade do nosso número anterior, publicamos neste um segundo dossiê em torno do cineasta e antropólogo Jean Rouch (1917-2004). Já apontei na apresentação daquele número o interesse antigo dos editores da revista pela obra e pela figura de Rouch, sobre o qual vários deles já haviam, em diversos momentos de seus respectivos itinerários intelectuais, escrito comentários, ensaios inteiros e até mesmo capítulos de tese.

Respondendo assim a uma admiração de longa data dos mineiros, nosso primeiro dossiê Rouch reagia também, no calor da hora, a um acontecimento que prometia colocar em novo patamar sua recepção no Brasil: um vasto evento em torno de Rouch organizado por mim, por Andrea Paganini e por Juliana Araújo, e realizado pela Associação Balafon, de Belo Horizonte, com apoio maciço do Ministério da Cultura e de sua Secretaria do Audiovisual, secundados por vários outros parceiros. Tal evento consistiu em uma retrospectiva de 91 filmes (77 do cineasta e 14 em torno dele) que itinerou por São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Brasília, de junho a agosto de 2009. Ele incluiu também dois Colóquios Internacionais sobre Rouch realizados em São Paulo e no Rio, e dois ciclos de conferências que os sucederam, em Belo Horizonte e em Brasília. Ele está gerando ainda o livro Jean Rouch 2009: Retrospectivas e Colóquios no Brasil (Belo Horizonte: Balafon, 2010, 172p.), por mim organizado, com textos de e sobre Rouch, e com detalhada documentação filmográfica e bibliográfica sobre sua obra. Num desdobramento imediato desta “Caravana Rouch”, a Associação Balafon já acertou com o MinC e com parceiros locais a itinerância de uma versão mais enxuta da Retrospectiva (com 37 filmes) por 6 outras capitais brasileiras – Salvador, Belém, Porto Alegre, João Pessoa, Recife e Natal -, prevista para março-junho de 2010.

Este novo dossiê Rouch vem a lume depois do festim de 2009, num contexto de recepção brasileira da obra rouchiana que certamente se adensou, mas cuja transformação ainda parece cedo para dimensionar. Se é fato que os interessados em seu trabalho tiveram ou terão, nas principais capitais do país, ocasião de um amplo contato com seus filmes, e com uma discussão qualificada sobre eles, não é menos verdade que a repercussão efetiva de tudo isto em nosso meio só poderá ser medida à luz dos trabalhos vindouros (estudos, teses, curadorias, etc) sobre Rouch, o documentário em geral ou as relações do cinema com a antropologia. Seja como for, este segundo dossiê Rouch ganha neste novo contexto um sentido um pouco diferente do que o que atribuíamos ao primeiro. Se o primeiro ajudava sobretudo a ampliar o impacto e o alcance da Caravana de 2009 no seu front editorial, este retoma o paciente trabalho coletivo dos que estudavam e continuarão a estudar Rouch, para além das circunstâncias externas fornecidas pela Caravana. Se aquele se pretendia parte de um grande evento catalisador, este ajuda a consolidar um processo de recepção, que tem outra temporalidade, menos pontual e mais difusa.

Neste número, esperamos contribuir para tal processo de duas maneiras, trazendo para o debate brasileiro elementos do debate internacional sobre Rouch, e reunindo alguns textos de estudiosos brasileiros que tem discutido sua obra nos últimos anos.

Para a primeira tarefa, traduzimos aqui um ensaio publicado em 1995 na França por Maxime Scheinfeigel, autora reconhecida de vários trabalhos sobre Rouch e participante dos nossos Colóquios de 2009. Concentrando sua análise em Eu, um negro, Scheinfeigel discute com finura as inovações trazidas pelo cinema de Rouch ao uso da fala no cinema.

Para a segunda tarefa, reunimos aqui mais cinco artigos de estudiosos brasileiros, com procedência e enfoque variados, a exemplo do que já acontecia no número anterior. Professores em departamentos de cinema, comunicação ou antropologia, Marco Antonio Gonçalves (UFRJ), Marcius Freire (UNICAMP), César Guimarães (UFMG), Leonardo Vidigal (UFMG) e Daniela Dumaresq (Universidade de Fortaleza) completam o elenco brasileiro dos dois dossiês1, que representa alguns dos principais pólos geográficos do debate rouchiano entre nós e cobre algumas linhas de força já manifestas neste debate. Possa este número, no rastro do anterior, ajudar a incrementá-lo, aprofundando o diálogo entre seus participantes.

Tal diálogo passa aqui por questões que aproximam os textos, sem anular suas diferenças de angulação e inspiração. Assim, Marco Antonio e Marcius discutem aspectos da interação de Rouch com os sujeitos filmados, Marco se concentrando sobretudo em sua dimensão epistemológica (ao tomar a experiência sensorial e o cine-transe como formas específicas de conhecimento em Rouch), Marcius privilegiando, à luz de noções de Claudine de France e de Martin Buber, sua dimensão ética e sua natureza dialógica. Assim, Leonardo e Daniela discutem aspectos estilísticos do cinema de Rouch, o primeiro examinando o uso da música pós-sincronizada em Batalha no grande rio (1952), a segunda partindo da discussão baziniana do realismo para sugerir uma política da imagem no uso (ou no desejo) rouchiano do plano- sequência em quatro filmes. No fotograma comentado, breve e denso, sobre passagens notáveis de Eu, um negro, César articula o dado estilístico (a relação entre a imagem e o comentário over de Oumarou Ganda) com a dimensão política (presente na maneira pela qual o filme encena o desejo do pobre – ator e personagem).

Este volume traz ainda a tradução do comentário proferido em over por Rouch no seu esplêndido Tourou e Bitti: os tambores de outrora (1971), uma de suas obras primas incontestes, e objeto, aliás, de considerações pontuais ou mais detidas em três dos seis artigos desse dossiê.

A seção Fora-de-campo completa o volume com dois textos consagrados ao cinema contemporâneo, o primeiro de Debora Breder sobre a articulação entre corpo, sexualidade e procriação em dois longas de David Cronenberg, e o segundo de José Benjamin Picado e Julio Landim Mano sobre duas adaptações cinematográficas recentes de obras do quadrinista Frank Miller.

 

Notas:
*1. O primeiro trazia, afora cinco traduções, textos brasileiros de Henri Gervaiseau, Renato Sztutman (ambos da USP) e Mahomed Bamba (UFBA), além de um escrito por mim.