Revista Devires v.01 n.01

Categoria:

Descrição

Devires, Belo Horizonte, v.1, n.1, p. 155-166, jul./dez. 2003 – issn 1679-8503

Sumário

1. Apresentação – César Guimarães e Ruben Caixeta – p.01
2. Os infernos de Peter Greenaway – Maria Esther Maciel – p.04
3. A dramaturgia agit-pop de Santiago Alvarez – Jair Tadeu da Fonseca – p.14
4. Novo e Marginal: imagens de Glauber – Liliane Heynemann – p.25
5. A descrição Visual em Antropologia. O exemplo de Balinese Character – Marcius Freire – p.32
6. O cinema de ficção científica e a superação da morte – Alfredo Luís Paes de Oliveira Suppia – p.51
7. Cineplástica(s), Deleuze leitor de Élie Faure – Réda Bensmaia – p.63
8. Fotograma comentado: Cassavetes – Maurício Vasconcelos – p.74
9. Entrevista: No Itinerário de Aruanda – Ana Carvalho – p.78
10. Resenha: Nelson Freire, de João Moreira Salles – César Migliorin – p.92
11. Ensaio: Escolher pensar – Silvina Rodrigues – p.98

 

Apresentação

Quando lançamos, em 1999, o número zero desta revista, vimos com ceti- cismo as promessas da dita retomada do cinema brasileiro. Nossos olhares estavam embaçados pelos efeitos especiais e pela pureza de uma estética dominada pela publicidade. Queríamos escapar das armadilhas do roteirizado e do planejado, refundar um pensamento crítico e combativo à la Glauber. Queríamos retomar uma crítica experimental, nos termos de Jean-Claude Bernardet: “não há crítico estimulante que não seja de alguma forma desar- ticulado”, pois “chegar a certezas é matar uma obra”. Mais que inacabada e isso é uma pena tal crítica hoje parece esquecida. Diante do inacabado, Devires não pretende recomeçar de onde supostamente parou. Queremos acrescentar incompletudes. O vazio deveria ser visto como algo à espera do outro, do exterior, e jamais como algo em busca da completude pelo menos é isso que diz a ontologia ameríndia. O quadro não deveria enfatizar somente o delimitado, mas, sobretudo, o que lhe escapa, o invisível, o indizível: uma cama arrumada à espera de todas as potências do fora.

No meio desse percurso, Jean-Louis Comolli convidou-nos a correr o risco do real, a romper com as imagens a serviço da propaganda e do planejamento orquestrado pelos poderosos. No lugar dos roteiros que se instalam por toda parte e pretendem agir e pensar no nosso lugar, apostamos nas fissuras do real, naquilo que nele resiste: o resíduo, a parte maldita. Reencontramos a singeleza dos personagens de alguns documentaristas, sua graça, sua sombra, a manifestação pela palavra e pelo corpo – de uma outra condição humana, em tudo distinta daquela que a novela das oito quer nos convencer de que é universal. Esses personagens nos levaram àqueles de Pierre Perrault e Jean Rouch e à imaginação fabuladora de Gilles Deleuze.

Enganam-se, entretanto, os que procuram na Devires uma filiação. Nossa ordem é a da simbiose “que coloca em jogo seres de escalas e reinos inteira- mente diferentes”: o cinema e as diversas artes, em especial a fotografia; as imagens, os sons, as letras e as ciências humanas; o documentário e a ficção. Mais que o centro, o cinema na Devires é um ponto e uma linha.

O cinema já foi definido inúmeras vezes e de várias maneiras, e, a cada vez, a multiplicidade das formas de expressão que ele abriga solicitava comparações e metáforas de todo tipo. Não faremos uma enumeração exaustiva. Podemos escolher as que mais amamos, não importa se enigmáticas ou elípticas, como esta de Manoel de Oliveira, que agradaria bem a Élie Faure: o cinema é uma “saturação de signos magníficos que se banham na luz da sua ausência de explicação”. Ou ainda esta de Deleuze, ao descrever os blocos de movimento e de duração de que os filmes são feitos: “O cinema não apresenta apenas imagens, ele as cerca com um mundo”. “O cinema é um país que não existe no mapa-múndi”, disse certa vez Godard. Um país suplementar, acrescentou Serge Daney, restando saber o que ele se tornou atualmente: talvez um im- pério, uma nação, uma província, um gueto, um subúrbio, uma favela, uma tribo, uma cidade… Um país por vir, diria Glauber.

Dentre as incontáveis definições do cinema, as mais justas são aquelas que põem em confronto suas potências de sentir e de pensar capazes de levar os espectadores a fazer da sua existência uma vida mutante e os poderes que o cerceiam. Este é o caso de uma das mais belas investigações poéticas e filosóficas acerca da identidade do cinema, apanhada sob o prisma da sua intrincada relação com o século XX: as História(s) do Cinema narradas por Godard. No episódio “A moeda do absoluto”, ao lembrar o quanto os poderes políticos e econômicos sempre quiseram fazer algo do cinema (seja em Auschwitz ou em Hollywood), o cineasta inverte a questão e pergunta: “o que quer o cinema? o que pode o cinema?”

Dominique Noguez afirma que o cinema pode nos oferecer sete desejos: 1) da tela grande, que enche nossos olhos; 2) de uma língua, a aura sonora de um povo; 3) de uma comunidade de afetos, com sua intimidade sonora e visual, olfativa, aérea, aquática, vegetal, urbana; 4) de fruição plástica de um universo de qualidades primeiras, anterior à elaboração perceptiva; 5) de fruição cinética, própria das imagens-movimento; 6) de uma escritura que extraia dos filmes os saberes que eles descobrem ou inventam; 7) e, por fim, os filmes despertam o desejo de fazer filmes…

Para nós, o cinema não é somente uma janela para o mundo. Como nos lem- bra Comolli, a representação, o filme, não estão fora do mundo e nem de frente para o mundo, olhando-o de fora: eles são atravessados pelo mundo e são eles próprios partes do mundo.

Charles Ferdinand Ramuz escreveu um dia sobre os filmes que, ao arreben- tarem o tabique que nos separa do mundo tabique de não saber, de não sentir, de não ver, de não viver concedem-nos “a vida como uma bolsa de água arrebentada com uma picareta”. São esses filmes que levaram à criação da Devires Cinema e Humanidades.

César Guimarães Ruben Caixeta de Queiroz