Descrição
devires, belo horizonte, v. 7, n. 1, p. 01-184, jan/jun 2010 – issn: 1679-8503
Sumário
Apresentação – Roberta Veiga – p.07
Artista sem modelo – Dominique Paini – p.14
Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, de Chantal Akerman
– Janet Bergstrom – p.18
O Fluxo e o Quadro – Youssef Ishaghpour – p.24
O índex corroído: liminaridade em Je tu il elle – Ivone Margulies – p.36
A propósito de D’Est – Chantal Akerman – p.60
Quantos quadros cabem no enquadramento de uma janela? – Roberta Veiga
Cartografias do Êxodo – Anita Leandro – p.94
De encontros e fronteiras – Carla Maia – p.112
Fotograma comentado – Amor de filha (Toute une nuit, 1982) – Mateus Araújo Silva – p.138
Fora-de-campo
Catástrofe do sentido e urgência da montagem: o Brasil em três fotogramas alemães dos anos 1930 – Mauricio Lissovsky e Thais Blank – p.150
Estética da desintegração: Matthias Müller filma Brasília – José Gatti – p.166
Normas de publicação – p.184
Apresentação
Roberta Veiga
No rastro dos dossiês monográficos dedicados anteriormente a cineastas particulares (Jean-Luc Godard, Pedro Costa, Jean Rouch), a revista Devires consagra agora um dossiê com nove textos à obra fílmica de Chantal Akerman, uma das cineastas mais importantes da Europa dos anos 70 para cá. Tardia, esparsa e até recentemente indigna da importância de seu trabalho, sua recepção no Brasil ganhou impulso nos últimos anos graças a duas retrospectivas no 10o forumdoc.bh (Belo Horizonte, novembro de 2006) e no Centro Cultural Banco do Brasil (São Paulo, Rio e Brasília, março de 2009). Dos quarenta filmes realizados pela cineasta belga, dez foram exibidos em Belo Horizonte em 2006 e vinte puderam sê-lo nas três outras cidades em 2009, num desdobramento bem-sucedido da iniciativa anterior. Com o presente dossiê, esperamos contribuir para a discussão de seus filmes, conjugando traduções de estudiosos akermanianos mundialmente reconhecidos com ensaios inéditos de autores brasileiros.
Cada um dos textos que compõem este dossiê restitui à sua maneira a singularidade do gesto que distingue a obra da diretora. Se acompanharmos alguns dos fios que os unem, encontraremos diferentes tropos aos quais os filmes de Akerman conduzem: mobilidade e exílio, judaísmo e desenraizamento, passagens e repetições, corpos e espaços. Mas o fio principal que faz convergir tais tropos é o que leva às modulações do lugar de resistência que o trabalho da cineasta belga ensejou dos anos 70 até hoje. Desde os primeiros curtas, o cinema de Akerman resiste às forças que buscam neutralizar sua natureza inventiva e reflexiva, sua capacidade de pensar constantemente sobre a forma, deslocando (ou compelindo) seus limites.
Os filmes dos anos 70 fizeram de Chantal Akerman um acontecimento do cinema feminista de vanguarda. Leituras feministas apontavam para uma noção de resistência. De um lado, tal noção surgia por um viés ideológico, para o qual o encenar dessa mulher, como diretora e personagem, representava a ruptura com o patriarcalismo. De outro, a perspectiva psicanalítica perseguia a representação do desejo feminino como uma ausência que o discurso da cineasta, por sua economia expressiva exígua, parecia fazer ressoar. A resistência formal de Akerman à inteireza das narrativas, encadeadas e plenas de sentido, propiciava a busca pelos modos como a mulher falava por si mesma.
Mediadora fundamental desse debate, a revista americana Camara Obscura, nascida em 1976, defendeu o contracinema ao identificar as figurações do feminino no modo pelo qual os filmes experimentais, feitos ou protagonizados por mulheres, rompiam as convenções do cinema ilusionista. Além da obra de Chantal Akerman, a revista contribuiu para colocar em discussão nos EUA o cinema de Marguerite Duras e Yvonne Rainer. A Devires rende uma homenagem a Camara Obscura com a tradução do texto de Janet Bergstrom, “Jeanne Dielman, 23 quai de Commerce, 1080 Bruxelles”, de Chantal Akerman, publicado em 1977, ainda no calor do lançamento do filme e da própria revista. Apesar da constante recusa de Akerman a associar seus filmes à causa das mulheres ou a qualquer outra, Jeanne Dielman (1975) é recebido nesse cenário como um filme de perspectiva claramente feminista. Os três dias da rotina de uma viúva de classe média, vistos por uma câmara fixa e distante, exibiam com frieza e firmeza a “mediocridade à qual as mulheres vinham sendo condenadas há séculos” (Camara Obscura, 1976).
Um ano antes, Je tu il elle (1974) já havia proposto outra visão do feminino, alargando concepções tradicionais de gênero e sexualidade. A longa sequência do sexo entre duas mulheres, rigorosamente enquadrada e protagonizada pela própria diretora, levantou controvérsias em torno do realismo, e discussões que iam da ternura à pornografia. Em seu excesso e sua duração, tal sequência parecia subverter a representação do corpo feminino promovida pelo espetáculo voyeurista mais corrente. O artigo de Ivone Margulies, “O índex corroído: liminaridade em Je tu il elle”, detalha como o projeto minimalista da diretora leva a uma despossessão do sujeito e liquefaz os lugares fixos de representação de homem e mulher, propondo uma subjetividade relacional. Se a vida privada da mulher, não só em Je tu il elle, mas também em Jeanne Dielman, alcançava sua dimensão política era porque a identidade se vinculava à forma e com isso parecia bem mais fluida do que os discursos, até então, davam conta de dizer. Para responder como a mulher fala, era preciso olhar o mecanismo mesmo do filme.
Dos anos 80 em diante, Akerman consolida seu lugar na renovação do cinema moderno europeu. Toute une nuit (1982), discutido por Mateus Araújo Silva na nossa tradicional seção do Fotograma Comentado (sob o título “Amor de filha”), resiste à continuidade espaço temporal e convida ao puro movimento de amantes anônimos em uma noite de verão em Bruxelas. O filme é uma coleção de mini-historietas de situações amorosas que retomam clichês românticos descontextualizados dos enredos ficcionais que os fomentam. Picotados e repetidos, eles esperam ser preenchidos por uma memória qualquer. O que une essa coleção é a troca afetiva, os gestos e o ritmo dos corpos, que engajam o espectador mais pelo tempo do que pelo espaço narrativo.
Se já nos anos 70 o caráter autobiográfico das obras de Akerman não cabia em nenhuma definição estreita – como indicam as menções a News from home (1976) em alguns dos artigos aqui publicados -, nas décadas seguintes esse caráter se estende. A subjetividade feminina ligada à memória da diretora transborda e se liga a uma memória coletiva, à história de uma geração judia cujos pais viveram as agruras da Segunda Guerra: os campos de concentração. Resistir é enfrentar, a cada filme, essa memória que chega em frangalhos. É torná-la obra.
Em D’Est (1993), Akerman vai a vários países do Leste Europeu, dentre os quais a Polônia, em que seus pais viveram até a Segunda Guerra. Essa viagem de retorno é uma quase volta às raízes, uma autobiografia indireta. Aqui é o belíssimo texto “A propósito de D’Est”, da própria Chantal Akerman, que nos convida a refletir sobre a resistência como uma busca incessante por uma história que não lhe foi contada, mas que ela supunha saber e ao mesmo tempo não sabia. O Leste representa o signo sem referência, o construto imaginário sem correlato geográfico. Na paisagem D’Est não há imagens do judaísmo, nem relatos. Distante, a câmara segue sem destino os prosaicos detalhes cotidianos dos lugares por onde Akerman passa. Uma história passada se projeta nas muitas faces impassíveis e espaços aleatórios que ela filma e que poderia continuamente filmar.
Seguindo essa perspectiva, encontramos o artigo “Cartografias do êxodo”, no qual Anita Leandro, ao relacionar os “documentários ficcionais” de Akerman, D’Est, Sud (1999), De l’autre côté (2002) e Là-bas (2006), exibe, entre as várias passagens, aquela mais tênue entre uma escrita de si e a história maior das “tragédias contemporâneas”. Para a autora, por meio do crime racista ocorrido no Texas, dos atentados em Tel Aviv, ou da imigração ilegal mexicana nos EUA, tais documentários fazem “ecoar o apelo dos mortos do Holocausto”. Em “De encontros e fronteiras”, Carla Maia recolhe em De l’autre côté várias imagens e vozes, indicando que mediante estratégias próprias ao documentário, Akerman refaz a ideia de fronteira geográfica, que será não apenas aquela que separa o México dos EUA, mas também aquela que se interpõe entre quem filma e quem é filmado. Nessa fronteira, que é também um encontro, o tempo, como experiência na e com a imagem, é a resistência. O tempo do outro, daquele que fala, reflete no gesto documental a opção formal pela duração que caracteriza toda a obra de Akerman.
Em Là-bas, a mobilidade, as paisagens e as fronteiras permanecem, pois permanece o impulso que coloca em movimento essa busca incessante de si que, para Laura Mulvey, torna o trabalho da cineasta inseparável de sua vida e transforma sua vida em um vigoroso material cinematográfico. Porém, em Là-bas essa procura de Akerman por outras paisagens que lhe tragam as imagens do passado no presente – que a aproxime por intermédio de outras vidas, menores, condenadas, expropriadas, dos vestígios dos campos de concentração – volta-se para o espaço privado e reduzido. Como proponho em meu texto, “Quantos quadros cabem no enquadramento de uma janela?”, nesse filme a diretora/personagem move-se entre quatro paredes, sem nunca se mostrar por inteira. A resistência é o exílio: esse tropos que, por lhe ser distante e familiar, precisa ser reencenado cinematograficamente.
Youssef Ishaghpour nos diz, de modo exemplar, em seu artigo “O fluxo e o quadro”, que Akerman impõe grades ao mundo, fixa o movimento, fragmenta a subjetividade, ao exercitar na forma o aparatus fundante do cinema: a reprodução técnica. Enquadrar é valorizar cada borda do quadro, esculpir o tempo nas imagens e colocá-las à distância repetidamente. Se o gesto minimalista, do qual nos fala Margulies, que surge em La chambre e Hotel Monterey, de 1972, se estende até Là-bas, de 2006, é porque ele se faz numa tensão: o que lhe escapa, “o rio arrastado pelas imagens”, o fluxo, e a prisão à qual Chantal se submete para reter, reconhecer e dar concretude. Essa prisão é física, ela é o apartamento, figura que Dominique Paini evoca no seu breve ensaio “Artista sem modelo”, e é também formal, está lá no rigoroso enquadramento que determina toda a obra. Resistir é um exercício da forma.