Descrição
devires, belo horizonte, v. 5, n. 1, p. 1-204
jan/jul 2008 – issn: 1679-8503
Sumário
Apresentação César Guimarães – p.06
Dossiê: Pedro Costa
A recusa do esquecimento inevitável Jair Tadeu da Fonseca – p.14
Pedro Costa e sua poética da pobreza Mateus Araújo Silva – p.26
Terra a terra: Portugal e Cabo Verde no cinema de Pedro Costa Jacques Lemière – p.46
O trabalho do cinema Oswaldo Teixeira – p.58
Genciana amarela, genciana azul Stella Senra – p.82
A carta de Ventura Jacques Rancière – p.104
Passo de Gigante Cyril Neyrat – p.112
Contracosta – Maurício Salles Vasconcellos – p.122
No cinema português – Bárbara Barroso e Daniel Ribas – p.136
Fotograma comentado – Uma imagem, uma escolha Francesca Azzi – p.160
Fora-de-campo
Louis Malle e a paixão do incesto: notas sobre Le souffle au coeur & Damage – Débora Breder – p.172
Por uma política da voz: Tomás Gutiérrez e as memórias do subdesenvolvimento – Ellen Döppenschmitt – p.184
Normas de publicação – p.204
Apresentação
César Guimarães
Foi em novembro de 2005, em um seminário da Cátedra Humanidades e Artes do Instituto de Estudos Avançados (IEAT), que Jean-Louis Comolli nos apresentou o cinema de Pedro Costa. No cine-clube da Escola de Belas Artes presenciamos, estupefatos, as sessões intermináveis de droga de Vanda e sua irmã Zita, confinadas no quarto *1.
Na sala escura, nós também estávamos emparedados, impedidos de nos projetarmos naqueles corpos que se autodestruíam. Dois anos depois, o Forumdoc.bh, em sua 11a edição, apresentou uma mostra integral dos filmes de Pedro Costa, e reencontramos Vanda em Ossos (1997) e em Juventude em marcha (2006). Vistos em conjunto, esses três filmes rodopiavam e multiplicavam a figura da protagonista, tornando indiscerníveis as fronteiras entre a pessoa e a personagem, a mulher e a atriz, o documentário e a ficção, a vida e a vida representada.
Sabemos bem que Pedro Costa não chama seus filmes de documentários. De maneira paradoxal, no entanto, se há um traço documental inegável em sua obra – arriscamo-nos a dizer –, ele provém de certos procedimentos do cinema ficcional moderno, em particular do modo com que ele mergulhou o pensamento no impensado do corpo – segundo os termos de Deleuze – para dele extrair as atitudes e as posturas. *2
Parece-nos que a severa dramaturgia que orienta a aparição dos corpos nos filmes de Pedro Costa pode proporcionar uma profícua interlocução com o campo da criação documentária e oferecer uma alternativa tanto ao predomínio da entrevista (reduzida a mero dispositivo coletor de informações, tão ao gosto da televisão) quanto ao choque do real imposto pelas estratégias do espetáculo, em doses maciças. *3
Com efeito, o espetáculo procura cada vez mais reanimar – à maneira de um eletro-choque – nossos corpos de espectadores exauridos diante dos abusos do simulacro ou entediados frente à multiplicação (ela sim, incansável) dos efeitos da imagerie virtual. Um pouco de real vem sempre reacender nosso desejo de ver mais, e é por isso que, ainda que ele surja sob a forma do excesso e do obsceno, sua dosagem é calculada para não perder o freguês (mesmo o mais ávido), e pode até mesmo comparecer nos filmes de ficção.
Nos filmes de Pedro Costa, é de modo inteiramente diverso que a ficção e o documentário se entrelaçam, assim como a maneira com que o real surge. Foi por enxergar em seus filmes tal força criativa e tal potência em resistir às estratégias espetacularizantes que animam tantas produções contemporâneas, que dedicamos este dossiê ao cineasta português, procurando investigar os diversos aspectos de uma obra que escova a contrapelo – para utilizar a imagem benjaminiana – o espírito embrutecedor do nosso tempo.
Tomemos, a título de exemplo, o longo plano inicial de No quarto da Vanda, em seus quase cinco minutos de duração, câmera imóvel a filmar o preparo e o consumo da droga pelas irmãs Zita e Vanda, enquanto os corpos exibem seu cansaço, sua fraqueza, a ansiedade em torno do novo estado que a droga proporcionará, para retirá-los, por um breve período, da exaustão que os percorre. O enquadramento, à maneira dos Straub, deixa ver a variação da luz que ora encobre, ora ilumina os corpos e o quarto desarrumado, cama desfeita, lençóis sujos, coleção de isqueiros usados. A fadiga dos corpos, seus acessos de tosse, a lentidão entorpecida dos gestos, a conversa entre as irmãs (ora lacunar, ora tensa), tudo isso dura no tempo (enquanto dura a tomada). As sessões de droga voltarão várias vezes ao longo da sessão, e não deixarão de perturbar o espectador, que é colocado fora do jogo, impotente diante do insuportável, ou melhor, diante daquilo que os corpos filmados suportam com dificuldade.
Parece contraditório falar de uma potência dos corpos em uma obra que os acolhe privilegiadamente no seu encarceramento extremo, espacial e subjetivo, quando a pequena área da vida sobrevive em espaços sufocantes. É que essa potência dos corpos em revelar o impensado do pensamento não existe fora do procedimento cinematográfico que a produz. Pedro Costa faz um cinema do contra: contra a leveza e as possibilidades técnicas da câmera Panasonic (tão elogiadas pelos fabricantes e vendedores), ele escolhe o lugar mais difícil para posicioná-la e a deixa paralisada, para que o campo, rigorosamente enquadrado (tanto plástica quanto geometricamente), seja testemunha dos corpos que o habitam, e que adensam o espaço filmado com seu andar – titubeante como o de Paulo, após a injeção nas veias que ainda suportam a picada; com sua respiração difícil, como a de Vanda, tragando o cigarro para forçar a liberação das secreções; ou com os movimentos lentos e hieráticos de Ventura, no conjunto habitacional que recebeu os antigos moradores do bairro de Fontaínhas, cabo-verdianos e portugueses pobres.
A câmara, contrariada, impedida de realizar suas qualidades técnicas, resiste à virtualização da figura humana promovida pela máquina do cinema, com seu poder de domesticar os corpos ao submetê-los à sua escritura, coisa que não é feita sem violência. Essa violência só pode ser enfrentada se a cena filmada se torna um jogo no qual o corpo mantém sua autonomia e sua liberdade, se ele aceita dela participar sem servidão.4 E para isso é preciso tempo para que os personagens exponham os afetos que os povoam, cujos resíduos se prendem às inflexões da voz, aos movimentos quase imperceptíveis do rosto, à performance dos gestos desautomatizados, animados por uma auto-mise en scène que o espectador acompanha com crescente dificuldade.
Vida “ao vivo”, quase sem cortes, morte ao vivo também, sem as atenuações da montagem, trabalhando os corpos de dentro, erodindo-os. Se esses corpos, em estados tão extremos, ainda surgem potencializados, isso se deve ao modo com que a filmagem documenta o seu encontro com a máquina de filmar. Ainda que Pedro Costa reafirme constantemente o caráter ficcional dos seus filmes, o traço documental reside no modo com que a presença da pessoa filmada modifica a mise en scène do filme e influencia a sua escritura. Se a máquina filma indiferentemente, o corpo filmado, por sua vez, não permanece indiferente à presença dela.
Embora essa aparição dos corpos nos filmes de Pedro Costa prolongue certos traços do cinema moderno – se seguirmos a leitura deleuzeana –, dele também se diferencia. A começar por aquela revelação dos corpos que experimentam, fisicamente, a realidade da perda nos filmes de Rossellini, até chegar aos personagens de Cassavetes, reduzidos unicamente às suas posturas corporais e encarregados de secretar, eles mesmos, a história. Nada se revela em No quarto da Vanda ou em Juventude em marcha: nenhuma mudança ou metamorfose, por minúsculas que sejam. Também estamos longe daquela cerimônia estereotipada montada por Andy Warhol e Paul Morissey em Chelsea Girls. Trata-se ainda de produzir a presença de corpos cotidianos, sem dúvida, mas fora de toda teatralização. Vanda, com seu corpo magérrimo e seus longos cabelos escuros, está no pólo oposto de Nico, a cantora do grupo de rock Velvet Underground. Nenhuma afetação ou performance astuciosamente preparadas para a câmera. Nem inocência nem perversão.
Submetida ao processo de desintoxicação, talvez um pouco sedada pelos remédios, Vanda retorna em Juventude em marcha. No seu quarto de casal, no apartamento do conjunto habitacional, ela brinca com a filha, diante da televisão ligada (que escutamos sem ver). O verde-escuro do quarto de Fontaínhas deu lugar à brancura das paredes do prédio recém construído, e a cama desarrumada na qual se drogava com a irmã foi trocada por uma pré-fabricada. No rosto de Vanda nada há de trágico, e ela poderia ter submergido na feroz banalidade da vida, não fosse o lugar e a escuta que o filme lhe ofereceu. Aqui, a beleza da representação é vizinha da violência que mina impiedosamente as vidas, ou então foi o seu véu que se tornou tão diáfano que quase não se vê mais, quase nada encobre mais? Essa indagação perpassa boa parte dos textos aqui reunidos em torno da obra de Pedro Costa. Que o leitor possa retomá-la e conduzi-la para novas direções, inesperadas e desconhecidas.
Notas:
1. No quarto da Vanda, 2000.
2. DELEUZE, Gilles. A imagem- tempo. São Paulo: Ed. Brasiliense,1990, p. 227.
3. A expressão “choque do real” está no título de uma coletânea dedicada ao debate das formas assumidas pelo realismo no cenário contemporâneo, nos domínios do cinema, da mídia, da fotografia e da literatura. Cf. JAGUARIBE, Beatriz (org). O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio De Janeiro: Rocco,2007.
4. COMOLLI, Jean-Louis. Algumas notas em torno da montagem. Devires – Cinema e Humanidades, Belo Horizonte: Fafich-UFMG, v.4, n.2, p. 37.