Revista Devires v.09 n.01 – Dossiê Cinema Brasileiro: Engajamentos no Presente II

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Descrição

devires, belo horizonte, v. 9, n. 1, p. 1-172, jan/jun 2012 – issn: 2179-6483

Sumário
Apresentação – Cezar Migliorin e Roberta Veiga – p.04

Dossiê Cinema Brasileiro: Engajamentos no presente
Além da diferença: a mulher no Cinema da Retomada – Lúcia Nagib – p.14
Lampejos da aura em Viajo porque preciso volto porque te amo e a “metáfora do documentário” – Roberta Veiga – p.30
“Um filme de”: dinâmicas de inclusão do olhar do outro na cena documental – Ilana Feldman – p.50
O direto interno, o dispositivo de infiltração e a mise-en-scène do amador: Notas sobre Pacific e Doméstica – Mariana Souto – p.66
Tradição (re)encenada: o documentário e o chamado da diferença – Amaranta Cesar – p.86
Bicicletas de Nhanderu: lascas do extracampo – André Brasil – p.98
A câmera e a flecha em Corumbiara – Clarisse Castro Alvarenga – p.118

Fora-de-campo
Cinema: o uso criativo da realidade – Maya Deren – p.128
O Cinema e seu duplo – Ivan Capeller – p.150

Normas de publicação – p.170
Pareceristas consultados – p.171

Apresentação

Cezar Migliorin
Roberta Veiga

No artigo de abertura desse número, Além da diferença: a mulher no Cinema de Retomada, Lúcia Nagib propõe que o gesto político verdadeiramente produtivo e criativo do cinema brasileiro, desde a Retomada, está na forma de trabalho que descentra a autoria e incorpora com maior vigor a dimensão coletiva em todo o processo de realização dos filmes. A Devires tem, em seus quase quatorze anos de existência, a característica de uma revista que só acontece na reunião de esforços dos editores, colaboradores, bolsistas e autores, muitas vezes pra além de seus encargos específicos. É justamente essa dimensão coletiva do trabalho que a alimenta e a faz transpor as dificuldades que se apresentam. Pra além da concepção de cada número, o envolvimento afetivo da equipe numa constante combinação de tarefas, e compartilhamento de funções, é o eixo estruturador de um espírito empenhado no propósito de produzir uma publicação engajada nos debates teóricos e nas obras que refletem critica e intensamente o campo do cinema nos dias de hoje.

Se esse espírito coletivo é nomeado aqui, no ensejo da apresentação do duplo dossiê, “Cinema brasileiro: engajamentos do presente”, tal fato não se deve apenas à maturidade que a revista alcançou ao longo de sua existência – e com ela, uma maior clareza acerca da potência da comunhão de afetos que a constitui –, mas principalmente à proposta mesma do dossiê, dos artigos que abriga e dos filmes que o inspira. O desenho que oferecemos parece incitar – não apenas diretamente, mas numa leitura que percebe os textos numa composição – a dizer do trabalho, dos modos de fazer, que necessariamente emergem nas formas de aproximação com os filmes, que cada autor aqui, à sua maneira, (re)inaugura. É nessa aparição, muitas vezes fortuita, muitas vezes enfática, do trabalho da imagem e da imagem como trabalho, que é tributária das obras e também da construção teórica e analítica dos autores, que a proposta de um cinema brasileiro no qual o estético e o político convergem encontra ressonância em seus modos de engajamento no presente.

O desenho desse dossiê parece ter surgido num lento processo. Num primeiro momento a chamada para os artigos esboçava um desejo por textos que viessem dialogar com uma série de questões que os últimos encontros do Seminário Temático da Socine – Cinema, estética e política: engajamentos no presente – vinha propondo: de pensar o cinema no contexto específico da experiência brasileira através não somente da análise de filmes, mas também do exame de seus modos de produção e circulação. “Como o cinema enfrenta e se articula com as formas contemporâneas do poder?”, foi a pergunta lançada. Nas várias leituras dos artigos, nas muitas e longas conversas entre nós, os editores e os colaboradores, numa tentativa de sempre “pensar junto com” e “ser junto com”, a revista tomou forma, uma forma já partilhada, de um par, um dossiê duplo, em dois números.

Engajamentos no presente nasceu I e II, nasceu numa separação. Ilana Feldman, em seu artigo, “Um filme de”: dinâmicas de inclusão do olhar do outro na cena documental, mostra como o cinema contemporâneo, ao se valer de um dispositivo que incorpora imagens de outros, feitas por outros, recusa a interação entre realizador e os personagens. O realizador é, então, ao mesmo tempo aquele que inclui e exclui, sendo essa exclusão fundamental para que, através do controle da montagem, uma exterioridade se crie e, com ela, a reposição da separação como uma dimensão produtiva da subjetividade. Os filmes tratados por Ilana retornam no artigo de Mariana Souto, O direto interno, o dispositivo de infiltração e a mise-en-scène do amador. Notas sobre Pacific e Doméstica. Nesse texto, Mariana faz uma análise minuciosa dos procedimentos e das formas fílmicas, em suas particularidades técnicas, revelando aos poucos como o trabalho do cinema, ao (re)criar relações de poder e de afeto, retoma em outra chave a preocupação das diferenças de classe que pautou o cinema nos anos 60 e 70.

Com esse desenho, aos poucos, vemos que aquilo que amálgama os textos em torno do engajamento do cinema no presente traz essas noções de diferença, separação, partilha, campo e extracampo, como intercessores dos domínios da estética e da política. Intercessores esses que só são possíveis de se encontrar num processo de lida com o cinema na dimensão aqui exposta: a do trabalho. No artigo de abertura, Lúcia Nagib identifica algumas das forças históricas que transformaram e mobilizaram a produção brasileira, na tentativa de repensar uma das grandes correntes do pensamento político sobre o cinema: o feminismo. Nesse caminho, segundo a autora, o Cinema da Retomada e seus desdobramentos contemporâneos convocam o pensamento sobre o feminino não na chave da diferença dada de antemão pelo gênero, mas na diferença que surge nos “novos modos de ser”, singulares, que os filmes dão visibilidade. Se no texto de Nagib, a diferença, entendida aqui como um dissenso que é próprio da partilha do sensível (para lembrar as formulações de Jacques Rancière tão presentes no pensamento dos autores que compõem esse duplo dossiê), tem sua raiz no trabalho cinematográfico que passa pela colaboração, ele fica explícito na escritura do filme, que deixa de ser representacional para ser apresentacional, numa hibridização entre ficção e documentário, acontecimento e encenação.

Num questionamento semelhante – de que a diferença ou a singularidade pode surgir na oscilação entre o acontecimento e a narrativa – o artigo Lampejos da aura em Viajo porque preciso volto porque te amo e a “metáfora do documentário”, de Roberta Veiga, propõe, a partir de uma pequena constelação de filmes, situar algumas estratégias através das quais o cinema enfrenta os regimes de visibilidade dominante. É no corpo a corpo com um filme específico, que o artigo vai retirar do trabalho de constituição do filme e da escritura formal, traços dessa resistência, sendo a possibilidade de um entre – o interior e o exterior, o documental e o ficcional – o modo como o filme expõe a fragilidade do aparato cinematográfico frente ao mundo filmado, e a diferença entre o eu e outro como constitutiva de uma estética autobiográfica.

Compondo um painel cada vez mais nuançado de como as noções de diferença, de comum e de alteridade, interpelam o cinema brasileiro contemporâneo, os dois últimos artigos – Tradição (re)encenada: o documentário e o chamado da diferença, de Amaranta César, e Bicicletas de Nandheru: lascas do extracampo, de André Brasil – e o fotograma comentado – A câmera e a flecha em Corumbiara, de Clarisse Alvarenga – introduzem as relações polêmicas entre a cultura, o cinema, e o povo indígena. Numa tessitura fina que se revela filme a filme (Corumbiara, Bicicletas…, As hipermulheres), a cada texto, acompanhamos o desvelamento de um cinema – feito por grupos que misturam índios e brancos – que ao documentar uma comunidade ou o que ainda há dela, suas transformações, ao convocar a encenação de práticas tradicionais e voltarem-se para si mesmo, (re)encontram o que está fora, o olhar do branco, e se reinventam para defender um modo de vida. Num movimento de dobra, a diferença é enunciada, o branco é espectador de sua própria cultura pelo olhar do índio, e o cinema é uma ação no mundo. Trata-se de um modo exemplar de lançar luz sobre a força política do cinema que aqui resgatamos no domínio do trabalho, nesse arranjo polêmico, no melhor sentido do termo, entre o coletivo, o comum, e a diferença, a separação.

Para o fora-de-campo, uma surpresa. A Devires foi presenteada por José Gatti com a tradução de um texto importante, Cinematography: the creative use of reality (Cinema: o uso criativo da realidade), de Maya Deren. Trata-se de uma reflexão – através de uma escrita precisa e profunda – sobre o potencial criativo da fotografia e do cinema a partir de suas singularidades técnicas e da comparação com outras artes. Finalmente, no artigo O cinema e seu duplo, Ivan Cappeler faz um mergulho nas relações entre o som e a imagem, o cinema mudo e o sonoro, e o lugar do espectador/ouvinte, através dos episódios paradigmáticos da literatura ocidental: Ulisses e as sereias, e Achab e Moby Dick.