Revista Devires v.15 n.2 – Dossiê Pedagogias do Cinema II

Categorias: ,

Descrição

devires, belo horizonte, v. 15, n. 2, p. 01-173, jul/dez 2018 – issn: 1679-8503 (impressa) / 2179-6483 (eletrônica)

Sumário

Apresentação – André Brasil e Clarisse Alvarenga – p.07

PEDAGOGIAS DO CINEMA II
Fazeres das imagens e saberes das lutas: A Revolta do Buzú e a dimensão pedagógica dos filmes feitos com movimentos sociais – Vinícius Andrade – p.16
O espaço comum na prática do documentário: memórias de uma comunidade de cinema – Douglas Resende – p.40
O audiovisual no MST: histórias, processos e estéticas – Carlos Eduardo de Souza Pereira, Luara Dal Chiavon e Maria Aparecida da Silva – p.60
Cartografando pedagogias e territórios sensíveis com o cinema no hospital – Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes – p.76

FOTOGRAMA COMENTADO
“Um desenho, várias emoções”: cinema e narrativas de trabalhadoras da educação pública – Ana Paula Soares da Silva Gomes – p.104
Cinema e mídias no Abecedário Janela da Memória – Inés Dussel e Adriana Fresquet – p.118

FORA DE CAMPO
Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra – Tatiana Hora Alves de Lima – p.146

Apresentação

André Brasil e Clarisse Alvarenga

Eis o segundo número do Dossiê Pedagogias do Cinema. Os escritos aqui reunidos, assim como ocorre no primeiro volume, apresentam-se engajados em uma experiência com o cinema e com a educação que é da ordem da emancipação política, realizada seja por meio do fazer das imagens, seja da experiência de vê-las juntos. Se o primeiro número (v.15, n.1) se voltava principalmente, mas não só, à produção de cinema por realizadores e coletivos indígenas, este segundo número do dossiê (v. 15, n.2) atenta-se ao entrelaçamento entre o cinema (ou, mais amplamente o audiovisual) e as demandas dos movimentos sociais, em suas lutas históricas por terra e moradia.

Aqui, novamente, os trabalhos esboçam uma pedagogia do sensível cujos termos não estão determinados a priori, mas surgem das relações entre as pessoas, as imagens e os espaços, envolvendo transformações nas formas de perceber, de ver, de escutar e de atuar. Nessa direção, cada um dos textos apresenta a conformação singular e, por vezes, circunstancial de uma pedagogia que nos sinaliza a impossibilidade de controle sobre os efeitos que o encontro com as imagens pode produzir.

Seria preciso notar, em contrapartida, que as ocorrências dessa pedagogia aqui caracterizadas e analisadas evidenciam a inegável importância das intervenções, tendo o audiovisual como aliado, não apenas em seus espaços mais próximos, mas também em zonas de contato e vizinhança entre experiências várias e irredutíveis. Um primeiro aspecto que se ressalta diz respeito à dimensão processual do cinema – abordado em sua relação com as experiências de formação e de partilha do tempo e do espaço. Em meio aos processos, produz-se o entrelaçamento entre saberes e fazeres cinematográficos e saberes e fazeres de cada um dos grupos sociais em suas específicas trajetórias históricas. Entre as lutas que se indicam e se elaboram nos textos aqui apresentados, estão aquela pelo direito à terra, no caso dos trabalhadores do campo; por moradia, no caso dos trabalhadores dos centros urbanos; por transporte urbano, no caso dos jovens e trabalhadores urbanos; por educação pública de qualidade, no caso de estudantes e trabalhadores da educação; mas também pela melhoria das condições de tratamento nos hospitais, com atenção à produção subjetiva e sensível; e pela presença da arte e, especificamente, do cinema e do audiovisual na educação. Todas essas disputas alteram tanto os processos políticos, quanto as formas cinematográficas; tanto os processos cinematográficos, quanto as formas da política.

A experiência compartilhada do cinema, em cada um dos espaços e tempos em que ele é praticado, sugere as muitas transformações nas relações, possíveis de serem estabelecidas internamente nos grupos historicamente silenciados, apagados e empurrados para fora das cidades e de suas terras. O interesse desses trabalhos não se limita, portanto, à análise dos filmes, mas se estende às maneiras complexas como a experiência vivida e os filmes se relacionam. Não há uma direção única, como se um processo sempre levasse a um filme, tendo este como seu fim último: em muitos casos, os filmes instauram processos e os processos levam a filmes, sempre de maneiras singulares e contingentes, sem prescrições metodológicas ou formais.

Um segundo ponto que se ressalta nos trabalhos aqui apresentados diz respeito à memória dos processos históricos de emancipação envolvendo grupos sociais e suas lutas. Nesse sentido é como se as experiências descritas atualizassem, em seus próprios termos, um legado de atuação social que será convocado no presente e reenviado ao futuro, sob a forma de memórias disponíveis por meio das experiências audiovisuais.

Esse movimento fica bastante evidente desde o artigo Fazeres das imagens, saberes das lutas: A Revolta do Buzú e a dimensão pedagógica dos filmes feitos em aliança com movimentos sociais, de Vinícius Andrade, em torno do processo que originou o filme A Revolta do Buzú, de Carlos Pronzato. O autor demonstra que, ao canalizar os anseios da juventude mobilizada em torno do preço da passagem do transporte público em Salvador, em 2003, o filme torna-se portador e transmissor de aprendizados sobre modos de organização e estratégias de ação. Foi por isso que o documentário acabou por funcionar como agente da gênese do Movimento Passe Livre (MPL) no Brasil.

Nesse sentido, para além das contribuições pontuais que o documentário ofereceu aos debates à época, o artigo reconhece no trabalho de Carlos Pronzato uma notável incidência sobre o curso histórico da luta por transporte urbano no país, explorando seus desdobramentos nos processos de organização e elaboração de formas de ação do MPL. Para Vinícius Andrade, ao absorver e expressar de modo singular os saberes tramados pelos jovens engajados nas lutas por transporte, partilhando de suas referências e vibrações, o documentário revelou-se agente decisivo na própria materialidade de tais processos históricos. “Nos parece que a constituição e trajetória do movimento, em sua identidade, organização e estratégias, não podem ser desvinculadas do modo como A Revolta do Buzú, enquanto filme, elaborou aprendizados, descortinando um caso notável de aliança entre documentaristas e movimentos sociais na história recente das lutas urbanas no Brasil.”

O segundo artigo – O espaço comum na prática do documentário: memórias de uma comunidade de cinema, de Douglas Resende – também investe fortemente em pensar os processos, nesse caso, o próprio documentarista a elaborar uma reflexão em primeira pessoa sobre aquilo que, inspirado em conceito de César Guimarães, ele chamou de comunidade de cinema na Ocupação Izidora, entre 2014 e 2016, em Belo Horizonte. Como narrado no texto, à medida em que o autor participa de visionagens compartilhadas, novas imagens surgem vindas dos moradores, muitas delas nunca antes vistas coletivamente, multiplicando os registros exibidos em espaços de convivência da ocupação.

Com isso, o dispositivo do cinema compartilhado passou a contemplar a pesquisa da memória audiovisual da comunidade, a partir da qual os habitantes do território, além de estarem em vias de constituir uma comunidade política e de moradia, acabaram por criar também e simultaneamente uma comunidade de cinema. Como reunir as imagens e sons de uma coletividade de um modo tal que se possa dizer um “nós”?, nos pergunta Douglas Resende. É no curso de algumas tentativas de responder à pergunta que se encontra este trabalho, que mostra como experiências de ver juntos as imagens produzem memórias e potencializam relações de colaboração indispensáveis para manutenção dos sentidos do comum entre os coabitantes do território ocupado.

De alguma forma, essa experiência do cinema como constituição do comum entre grupos mostra-se presente na maneira como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) elabora sua relação com o audiovisual. No artigo O audiovisual no MST: histórias, processos e estéticas, escrito coletivamente por Carlos Eduardo de Souza Pereira, Luara Dal Chiavon e Maria Aparecida da Silva, o audiovisual se evidencia como ferramenta pedagógica nos mais diversos cursos e atividades desenvolvidos pelo Movimento. Ficamos sabendo como praticamente toda a militância do MST, desde os anos 1990, assistiu e debateu, em algum espaço, o filme Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho (1984). Aos poucos, com o investimento em sua produção interna, o Movimento passou a debater criações de cineastas parceiros e então realizar e debater seus próprios filmes.

Se os artigos anteriores se dedicam aos processos de criação e formação audiovisual junto a movimentos sociais urbanos e rurais, aqui, o cinema (sempre pensado em sua amplitude) ocupa o espaço do hospital, experiência que será cartografada por Fernanda Omelczuk e Tatiane Mendes. Neste contexto, o cinema potencializa-se por sua sonoridade que, para além dos olhos, abre espaço para o afeto e a memória. As autoras ressaltam ainda como, ao transcorrerem em um espaço público, experiências sensíveis podem se tornar coletivas. “O que temos acompanhado e tentamos cartografar é a suspeita de que o cinema, ao compor-se território sensível junto aos sujeitos, pode contribuir para transformar o período de internação nessas experiências de aprendizagem, construção de conhecimento e reinvenção de significados, compartilhamento sensível de sons, imagens e afetos, que se tornam narrativas coletivas.”

Guardadas as suas diferenças, a escola também se torna um espaço onde memórias individuais e coletivas dialogam como nos mostra o Fotograma comentado “Um desenho, várias emoções”: narrativas de sonhos, lutas e afetos pelas vozes de trabalhadoras da educação de uma escola pública do município de Belo Horizonte, da educadora Ana Paula Soares da Silva Gomes. No ano de 2019, ela convida três mulheres, que participaram da construção da Escola Municipal Rui da Costa Val, para uma conversa em torno de um quadro – um antigo desenho da escola recém restaurado e agora exibido na biblioteca –, dispositivo para a realização de um filme. Cada uma das participantes irá falar tanto sobre sua experiência pessoal quanto sobre a história da escola e do bairro, entrelaçando dimensões individuais e subjetivas àquelas coletivas e históricas.

Ao mostrar o filme que realizou a uma turma do 8o ano, a autora observa que os estudantes não reconheciam, até então, as habilidades artísticas de Selma, uma das entrevistadas. “Eu não sabia que Selma era artista, para mim ela só cuidava da limpeza da escola”, diz uma das alunas. A “cena” de exibição do filme evidencia a imagem como forma de redistribuir as identidades e posições que as pessoas ocupam nos espaços.

Não há como esquecer que Paulo Freire (1975) nos ensina que a educação libertadora é dialógica e, portanto o educador, enquanto educa, é educado e o educando, enquanto é educado, educa. Diferente do que acontece na educação bancária, que transforma o conhecimento em recurso mensurável e passível de ser administrado e que considera os sujeitos como objetos, como “depósitos” de um conhecimento formulado por outros em outros lugares, Freire irá traçar e firmar um caminho em direção à emancipação. “Ambos [educadores e educandos] assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os ‘argumentos de autoridade’ já não valem” (FREIRE, 1975, p. 78). É justamente por isso, que Freire vai dizer que ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém educa a si mesmo. Os sujeitos se educam mediatizados pelo mundo, sendo o mundo mesmo considerado como “uma realidade em transformação, em processo” (1975, p. 82).

Atentas às transformações que as imagens promovem na vida das pessoas e, por consequência, no campo da educação, seja ela escolar ou não escolar, Adriana Fresquet e Inés Dussel elaboram o Abecedário Janela da Memória, nos permitindo acompanhar o diálogo que ambas estabelecem entre si sobre temas contemporâneos como a Atenção, o Cinema, as Mídias Digitais, a Wikipédia e o YouTube. Trata-se de pensar, nesse abcedário-conversa-cartografia, como a presença das imagens técnicas e mídias digitas impactam fortemente a educação, em elaborações potencializadas pela aproximação a autores como Jonathan Crary, Alain Bergala, Byung-Chul Han. Diante das alterações provocadas pelas imagens em processos de produção de conhecimento, colocam-se a urgência e a necessidade “de desaprender algo das visualidades que carregamos”: desacelerar os processos, focar a atenção e suspender modos habituais de reagir aos dispositivos. “Personalizar tempos de resposta e protocolos de comunicação em tempos de hiperconectividade e informação infindável parece se tornar cada vez mais uma questão da educação escolar, nem sempre claramente assumida.”

Há assim outra luta em curso, que, de alguma forma, se relaciona com as demais: ela reivindica a inclusão do cinema e da arte dentro das escolas sejam elas de educação básica ou ensino superior, como experiências reconhecidas não apenas em sua instrumentalização para outros campos de conhecimento, mas como parte constituinte de experiências sensíveis e emancipadoras, atentas ao presente histórico em que vivemos: à educação e às escolas demanda-se que se posicionem sobre a relação dos sujeitos com as imagens e sobre os processos de produção de conhecimento envolvendo o audiovisual.

O artigo da seção Fora de Campo retoma um momento da história dessa relação entre o cinema e os processos emancipatórios, com o artigo Corpos-ruínas em Conterrâneos velhos de guerra, de Tatiana Hora. A autora mostra como o documentário de Wladimir Carvalho se coloca “ao lado” dos candangos, ao narrar a história por meio da relação com os sujeitos filmados, trabalhadores que atuaram na construção de Brasília e que foram empurrados para fora da cidade que construíram. No filme, os discursos do progresso e do desenvolvimento são contestados por meio de testemunhos dos trabalhadores, de imagens de arquivo e também pelo posicionamento, em cena, do cineasta, que questiona as autoridades acerca dos acontecimentos que insistem em idealizar ou ocultar. “Conterrâneos encontra na condição de corpos restantes dos candangos não só a expressão da exclusão que vivem atualmente na cidade, como também a potência histórica que carregam.” O documentário desvia a história e a arquitetura por meio de corpos-ruínas – aqueles que restam, ejetados ou soterrados na cidade, mas também corpos que carregam as memórias dos vencidos, e que emergem como sujeito coletivo. As histórias que narram é o que resta entre eles, o que promove a abertura para possibilidades utópicas latentes.

 

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.