Revista Devires v.11 n.1 – Temática Livre: Ficção

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Descrição

devires, belo horizonte, v. 11, n. 1, p. 01-187, jan/jun 2014 – issn: 1679-8503

Sumário

Apresentação – Glaura Cardoso Vale e Maria Ines Dieuzeide – p.06
Mikio Naruse: Rio profundo com superfície plácida – João Lanari Bo – p.14
Lola Montès: o olhar contrariado – Luís Felipe Flores – p.26
À margem: Quixote vai ao cinema – Edson Burg – p.52
Fotograma comentado – Rosto e palco: a espreita da morte e a construção do horror em Gritos e Sussurros – Roberta Veiga – p.70
Ainda estamos no jogo?: Sobre o jet lag e as realidades de eXistenZ – Bruno Souza Leal, Nuno Manna e Felipe Borges – p.82
Um cinema de detalhes: materialidade e percepção na Trilogia de Kieéslowski – Bruna Triana – p.102
Neo-realismo americano em Wendy and Lucy – Tiago Lima Quintanilha – p.126

Fora-de-campo
Eternidade, espectralidade, ontologia: por uma estética transobjetual – Fabián Ludueña Romandini – p.154

Normas de publicação – p.186

Apresentação

Glaura Cardoso Vale
Maria Ines Dieuzeide

O cinema, desde o seu início, sempre complexificou a relação documentário/ficção. Como não lembrar das duas tomadas da saída da Fábrica Lumière que ficava à rua Saint-Victor? O set da primeira filmagem de rua que entraria para a história do cinema? O mesmo plano, que nos acostumamos a ver como documental, fora gravado em períodos distintos, e os sujeitos filmados, na sua maioria mulheres, são “personagens de um grupo da classe de trabalhadores”, conforme salienta Bertrand Tavernier.1 Os dois cavalos, o cachorro e a bicicleta que apareciam na primeira versão, não aparecem na segunda; o vestuário também muda, mas a saída apressada dos operários2 da fábrica se mantém. Era preciso encenar mais de uma vez a vida ordinária para imprimir um traço dessa realidade. O cinema, que nasceu da exploração do trabalho, mais tarde sobreporá camadas de imagens e de textos, encontrará homens e mulheres dispostos a confrontá-lo e a modificá-lo, seja no embate direto com a câmera, diante da urgência de filmar um evento,3 seja ao propor uma etnografia na cidade4 ou quando elabora um roteiro que evidencia e coloca em questão as estruturas de poder que oprimem a classe operária e os trabalhadores do campo,5 por exemplo. Também quando expõe e coloca em risco o estar no mundo, indicando nossas fragilidades e impotência perante não apenas as guerras e catástrofes, mas, também, perante o amor, a amizade. Isso porque somos afetados pelo/com o outro na alegria e na dor.

Três décadas depois da invenção do cinematógrafo, o clássico Um homem com uma câmera (1929), de Dziga Vertov, quando o cinema já havia de fato conquistado as ruas, ocupando- as com o corpo-câmera, nos dirá: “tudo é montagem”. A câmera se lançou no mundo e encontrou as cidades, as pessoas e o tráfego vertiginoso, antes mesmo de receber som e cores. Será o cinema, que surgirá do encontro entre a câmera e os sujeitos filmados (reais ou ficcionalizados), e que se faz na mesa de montagem, aquele que reivindicará para si um lugar no mundo e o seu papel – ou seu desejo – de reinventá-lo.

Tudo isso é bem conhecido, sabemos, mas ao longo de todos esses anos de publicação da Devires – Cinema e Humanidades, os textos continuam a retomar – alguns deles servindo-se de procedimentos comparativos – algo que esteve posto desde o início da história do cinema, como a possibilidade de reinventar o mundo com os sujeitos (atores e personagens) que o constroem na pequenez dos dias.6 As análises se mantêm atuais e atualizam as discussões sobre os filmes, assim como os reinserem na linha do tempo – para aqueles que se encontravam esquecidos ou restritos apenas à cinefilia. Nesse sentido, a Devires tenta garantir o compartilhamento de discussões pertinentes e atualizadas sobre o cinema, em perspectiva histórica ou estética, numa revista acadêmica que procura preservar o frescor de uma leitura atravessada, por que não dizer, também pelos afetos – uma vez que os próprios filmes, com suas diferentes dinâmicas, provocam engajamentos espectatoriais que convocam o analista a um pensamento mediado pelos choques visuais (como veremos em alguns dos textos presentes neste volume).

Em 2014, numa variação das propostas editoriais anteriores que, por meio de dossiês, ora privilegiaram autores centrais do cinema moderno e contemporâneo – como Jean Rouch, Jean-Luc Godard, Pedro Costa, Chantal Akerman, Andrea Tonacci, Straub e Huillet, dentre outros –, ora um tema definido, como o número dedicado às relações entre fotografia e cinema ou aos “Engajamentos no presente” (dedicada à cinematografia brasileira recente), a Devires, ao adotar a Temática Livre, propõe, em dois novos números – um dedicado ao documentário, outro à ficção – um conjunto de análises sobre filmes de distintos contextos e estilísticas.

Os filmes abordados neste volume são de natureza ficcional, inegavelmente, trabalhados com roteiros prévios e personagens delineados, embora marcados pela incerteza, opacidade e indefinição. Alguns dos trabalhos, voltados para produções que se basearam em obras literárias, se propõem a discutir não a adaptação do texto para a tela, mas as implicações e as errâncias dos personagens no filme, sendo Dom Quixote talvez o caso mais complexo dentre eles.

“Mikio Naruse: Rio profundo com superfície plácida”, de João Lanari Bo, e “Lola Montès: o olhar contrariado”, de Luís Felipe Flores, que iniciam este volume, discutem o universo feminino e os efeitos estéticos da progressão narrativa em obras cujas heroínas precisam dar conta dos contratos sociais e do lugar que ocupam no mundo – no caso de Naruse, na sociedade moderna e capitalista;7 no caso de Lola Montès de Ophuls, no contexto social do século XIX. Em Naruse, segundo João Lanari Bo, “o ritmo fluido da narrativa e a mise-en-scène (…) coexistem em contraponto à crua descrição das rápidas mutações culturais que o Japão experimentou após perder a guerra com os Estados Unidos”. Em Ophuls, a respeito das atrações cinematográficas em Lola Montès, Luís Felipe Flores fala da complexidade “de naturezas diversas (som, cor, formato da tela, figurinos, performances, gestos, palavras)” que produzem “efeitos ambivalentes, enriquecendo a construção da imagem e funcionando, de fato, como ‘atrações deslocadas’, componentes cênicos e narrativos que se desviam da função para eles esperada, forçando o espectador a uma reorientação”.

Em “À margem: Quixote vai ao cinema”, Edson Burg abordará o personagem de Cervantes e suas múltiplas aparições nas produções cinematográficas, de Georg Wilhelm Pabst, que o adaptou em 1933, a Orson Welles, em 1995. Para o autor, a diversidade temática é o “trunfo e o problema em se adaptar” o personagem de Cervantes, cujo “processo de transposição do literário ao cinematográfico exige certa independência do segundo em relação ao primeiro”, especialmente “na disposição das aventuras de Quixote e Sancho”. Isso porque, inevitavelmente, “a narrativa ganha um tom episódico, com esquetes enfileiradas sem fluidez que culminam bruscamente num acontecimento final (em geral, a morte de Quixote/Quijano)”. Edson Burg faz um percurso que vai do literário ao cinematográfico, atribuindo a Quixote as características de “repetição e corte”, a partir de Agamben, além de convocar as reflexões de Foucault para pensar a “loucura”, questão central no romance.

No fotograma comentado por Roberta Veiga, “Rosto e palco: a espreita da morte e a construção do horror em Gritos e Sussurros”, o drama feminino também está posto em cena agora sob a ótica de Ingmar Bergman. Três irmãs, uma delas prestes a morrer, e a criada. Rostos aflitos diante de um corpo em decomposição. Como escreve Roberta Veiga, “o sofrimento de Agnes é corporal, encarnado na matéria fílmica: o close de seu rosto que muda de coloração e se contorce de dor; (…) o som da respiração estranha – uma mistura de gemido e grito – que se assemelha aos grunhidos de um bicho”. A dor do corpo agonizante percorre o casarão suntuoso da família, a autora salienta. O passado retorna, mas é impossível para as três irmãs restituí-lo com gritos e sussurros. O Fotograma Comentado torna-se, assim, uma dobra que nos permite avançar na discussão que propomos ao leitor.

O texto “Ainda estamos no jogo?: Sobre o jet lag e as realidades de eXistenZ”, de Bruno Souza Leal, Nuno Manna e Felipe Borges, tensiona as noções que “comumente fundam nossa experiência da realidade”. Em Cronenberg, segundo os autores, o corpo humano “não é algo fechado e coeso, e, por conseguinte, revela diversas facetas do sujeito, escancarando aquilo que, muitas vezes, escondemos dos outros e de nós mesmos – muitas vezes inconscientemente”. O corpo é, especialmente, “a instância que centraliza as discussões propostas pelo cineasta e que abre caminho para elas”. Identidades que se confundem, num universo mediado pela tecnologia e pelos experimentos científicos, no limite entre “o orgânico e o sintético”, e cuja vivência “traz à tona novos ‘eus’, levando à perda de lugares estabelecidos no mundo”.

Em “Um cinema de detalhes: materialidade e percepção na Trilogia de Kiesélowski”, Bruna Triana reflete sobre os modos como as questões temáticas presentes em Bleu, Blanc e Rouge – notadamente, as relações de alteridade no contexto da construção da União Europeia e da comemoração do bicentenário da Revolução Francesa – aparecem mediadas pela materialidade do cinema, e como outros sentidos (além da visão e da audição) são mobilizados pelos filmes para “transmitir experiência ao espectador”. De acordo com a autora, Kiesélowski problematiza o lema da Revolução a partir dos detalhes de dramas pessoais e, segundo argumenta, “dessa tensão entre a ética como princípio e as ações humanas do dia a dia, sempre carregadas de polissemias, é que surge a expressividade da estética do diretor polonês, uma cinematografia que sugere a reflexão sobre a ambiguidade dos atos humanos”.

Na sequência, “Neo-realismo americano em Wendy and Lucy”, de Tiago Lima Quintanilha, lidará com personagens à deriva, que se deparam, nesse caso, com uma América em crise, a América do desemprego. A respeito do chamado “novo cinema americano”, Quintanilha diz que “há duas condições gerais maioritariamente aceites pelos estudos em neo-realismo no cinema, que servem muitas vezes de base na abordagem ao tema: a lógica do documentário e a representação da realidade social e económica de uma época”. Um filme que trata da realidade dos EUA e reivindica – através do neo- realismo – um status documental, conforme o autor afirma. Não à toa escolhemos este texto para encerrar esta seção em uma organização que pretendeu criar uma progressão não necessariamente temporal, mas de temas que aos poucos vão imbricando e corroborando o entendimento dessa multiplicidade que é o fazer cinematográfico.

Em comum, os textos apontam essa realidade “paralela”, em que os personagens vivem seus momentos de dores, segregação, loucura, morte, alguns à margem de toda a sorte. Nesse cenário, Dom Quixote, figura textual tão solicitada, segue resistindo, da literatura para o cinema, através do humor. É preciso lutar contra moinhos de vento. Para Quixote, é necessário combater gigantes, talvez porque heróis precisam confrontar seres fantásticos, mais fortes do que eles. Mas que continuem sendo moinhos, não gigantes.

Por fim, em uma cuidadosa tradução de Luís Felipe Flores, o texto “Eternidade, espectralidade, ontologia: por uma estética transobjetual”, de Fabián Ludueña Romandini,8 encerra este volume.

Notas:

1. No filme The Lumière Brothers’s first film (1996), que pretendeu reunir toda a produção dos irmãos Lumière.

2. Harun Farocki retoma essa cena problematizando-a em Arbeiter verlassen di Fabrik (Workers leaving the factory), filme de 1995.

3. A título de exemplo, A bientôt j’espère (Chris Marker e Mario Marret, 1967- 1968).

4. Crônica de um Verão (1961) do cinema-verité de Edgar Morin e Jean Rouch.

5. Apenas para citar exemplos da cinematografia brasileira: Eles não usam black-tie (1981), dirigido por Leon Hirszman, o mesmo diretor de ABC da Greve (1979); sobre a luta campesina, Cabra marcado para morrer (1984), de Eduardo Coutinho, projeto interrompido em 1964 e retomado pelo diretor 17 anos depois, quando reencontra os personagens.

6. Já nos filmes dos irmãos Lumière, quando a câmera adentra o cotidiano, encontramos a fabulação entre familiares e empregados, mas são as crianças (na mesa do café, no andar desencontrado dos primeiros passos, na guerra de travesseiros, nas acrobacias) que talvez melhor traduzam essa possibilidade de reinventar o mundo em apenas 50 segundos de imagem.

7. Vale lembrar, como apontado por Lanari Bo, que a constituição do imaginário feminino presente na obra de Naruse está marcado pela literatura de Fumiko Hayashi, escritora de quem o diretor adaptou seis livros.

8. Filósofo argentino com dois livros publicados pela editora Cultura e Barbárie: Para além do princípio antrópico: por uma filosofia do Outside e A comunidade dos espectros. I. Antropotecnia, ambos de 2012.